A missão civilizatória do Círculo da Matemática
Matemática

A missão civilizatória do Círculo da Matemática


Na sexta passada entrei pela primeira vez para substituir um educador do Círculo. Foi em uma das escolas mais difíceis e disfuncionais que já vi em minha vida. Comecei com uma turma de 10 alunos onde 8 deles, na faixa dos 9-11 anos, começaram a gritar, se empurrar, se agredirem, no momento em que entraram na aula. Foi necessário um esforço muito grande para que começassem a ter um pingo de atenção, quando comecei com a pergunta (deprimente) de quantos gostavam e não gostavam de matemática? Bom, a pergunta não deveria ser deprimente por si mesma.

Mas a resposta foi: 8 dos 10 responderam que a matemática era muito chata, que não era divertida Então perguntei o que era divertido e meninos e meninas juntos responderam que os esportes e futebol eram muito divertidos. Ganhei assim um 'bônus de atenção de 10 minutos' deles para perguntar a eles quantos alunos eles achavam que havia na turma como um todo. Quando terminamos esse exercício,  com os nomes de todos e suas respostas na lousa, perguntei a eles: "-qual o maior número de todos? (daqueles que haviam dito)" E eles não sabiam responder. O maior número de alunos na classe dito por um deles tinha sido o número 35, mas ninguém foi capaz de reconhecê-lo em relação aos demais. Passei rapidamente para a bailarina, que se transmogrificou em um jogador de futebol.

Na reta dos números, os alunos gritavam cada número da sequência como se cantassem uma música, na qual memorizaram a letra (o post do Raphael está corretíssimo nesse ponto: eles não tem a noção de espaço dos números, apenas os repetem) e tiveram um pouco de interesse quando o jogador começou a correr de 3 em 3 e foi rapidamente alcançado por outro que corria mais (sim, este era o Neymar segundo eles!) de 4 em 4. Mas a atenção deles durou muito pouco, e antes de se chegar à próxima consideração alguns alunos começaram a se jogar no chão, outro fechou o punho e encostou na face de uma menina, outro veio a frente para dançar, outro se atirou em cima de outro que começou a chorar, eu pedi novamente a atenção deles para tentar a 'escadinha'.

Por um momento a história dos números negativos (eu não citei esse nome a eles) envolvendo temperaturas baixas e dívidas financeiras chamou a atenção deles. Até que eu perguntei, depois de ter desenhado a parte positiva dos números negativos, qual era o menor número e se havia algo abaixo do zero?? A revolta foi geral. Novamente alunos se atiraram no chão, outros ameaçaram quebrar a mesa na cabeça de outros, meninas foram para o fundo da sala dar 'tchauzinho' para quem passava, e o estado 'normal' do caos se instaurou novamente na sala. Nesse momento, um aluno que já tinha cansado de bagunçar respondeu: "-ora professor, abaixo do zero somente pode estar o capeta!" (naquele momento, óbvio, pensei no 'diabo dos números', recomendo fortemente a leitura) Tivemos assim o '1' do capeta, o '2' do capeta, etc até que eles reconheceram que independente do nome era um '1' e um '2' e um '3' diferente. Foi quando então a aluna mais quietinha da aula disse: "-é um número negativo, não?" O sol brilhou novamente! Perguntei o que os outros achavam e mesmo os bagunceiros concordaram que era uma boa opção.

Nesse momento, o maior aluno de todos, já com 11 ou 12 anos, afirmou que a sequência de números era 'finita' (querendo dizer 'infinita') e um coro de "burro, burro...." (um de muitos que escutei naquela hora com essa turma) ecoou. Obviamente, elogiei a ideia, disse que ninguém sabia de tudo, que eu mesmo não tinha certeza daquilo mas que me parecia que os números negativos, também podiam ser infinitos ou finitos. Tentei esclarecer a terminologia, mas a troca de xingamentos entre o maior aluno e outro foi inevitável.

A batalha continuou. O intervalo de intervenção pedagógica foi espasmódico. Entre xingamentos e agressões, entre a barbárie e o caos, foi possível trabalhar a reta dos números, discutindo números negativos e o significado do infinito. Os instrumentos do Círculo funcionaram no seu limite. Mas mais precisa ser feito. Precisamos identificar explicitamente a existência de turmas disfuncionais e discutir instrumentos para lidar com elas no futuro. Aqui vão algumas ideias, discutidas com o Raphael que estava na mesma escola:

1. ter turmas ainda menores; se não funciona como deveria com 10, precisamos para eles ter grupos ainda menores, talvez de 5

2. ter cuidado para exercer uma 'engenharia de relações', garantindo diversidade mas evitando relações de conflito entre os participantes

3. fazer com que usem mais a lousa, pois parece que ela é um centro de gravidade para eles. Muitos tem um comportamento péssimo por pura carência afetiva e ir a lousa é um momento de atenção que se presta a eles

4. trabalhar melhor atividades que estimulem o respeito mútuo

O Círculo da Matemática enfrenta de frente um desafio que é civilizatório na educação brasileira e que demanda o uso de estratégias ainda mais inclusivas para que esses alunos/as não fiquem aparte da sociedade brasileira, já aos 9-11 anos de idade. Esse não é um trabalho de curto prazo e nenhum educador deve esperar que vai mudar essa realidade estrutural de vez. Esse é um trabalho que exige dedicação, perseverança, mudança de estratégia, refinamento de instrumentos.

As outras turmas que vieram naquela tarde foram bem mais tranquilas. Mas a pior turma de todas deixou uma lição importante: o Círculo da Matemática tem uma missão civilizatória, já conhecida com certeza pela grande maioria dos educadores/as do Círculo: trabalhar mudando a visão dos alunos justo naquela disciplina que tem a pior reputação de todas pode mudar a relação dos alunos com o ato de aprender e a razão de ser na escola. Todos os progressos, por menores que sejam, devem ser celebrados como um pequeno passo nessa direção necessária para uma vida melhor para todos.





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