A Vergonha das Bancas de Pós-Graduação e de Concursos Públicos
Matemática

A Vergonha das Bancas de Pós-Graduação e de Concursos Públicos




O filme Twelve Angry Men (Doze Homens e Uma Sentença), de Sidney Lumet, conta a história de um júri que deve decidir se um jovem é culpado ou inocente da acusação de assassinato. Entre os doze, onze estão convencidos da culpa do réu. Mas um deles (interpretado pelo notável Henry Fonda) tem dúvidas. Ele quer discutir, trocar ideias, avaliar o caso com cuidado. É uma pessoa que prestou cuidadosa atenção nas alegações da defesa e da acusação.

O filme é uma batalha dialética como poucas vezes se testemunhou no cinema. No final, os doze acabam por inocentar o réu, por perceberem que não havia provas concretas, mas apenas evidências circunstanciais. Afinal, um réu só pode ser considerado culpado por assassinato se não houver dúvidas sobre o caso.


Em 2005 foi publicado um belo livro de Richard Dawkins (O Capelão do Diabo, Companhia das Letras), no qual o autor coloca em xeque a cientificidade dos usuais procedimentos adotados em tribunais de júri. Um júri (em diversos países) é formado por doze pessoas supostamente idôneas e de espírito independente, que não podem ter contato com o mundo exterior e eventuais reportagens da mídia. Eles têm a finalidade de decidir o futuro de um réu a partir de sessões em tribunal envolvendo advogados, testemunhas, eventuais peritos e o próprio réu. No entanto, os membros do júri podem conversar entre si em sessões secretas. A questão então é a seguinte: de que forma isso garante independência de pensamento e, portanto, de julgamento? 


Quando uma nova droga é testada em humanos, criam-se dois grupos de voluntários: aqueles que recebem a droga e um grupo de controle que recebe apenas um placebo, algo como uma pílula de açúcar. Nem mesmo os enfermeiros que administram a droga, ou aqueles que distribuem o placebo, sabem o que estão entregando aos voluntários. Isso garante independência entre eventos, encarando as reações de cada voluntário como um evento. Se, por exemplo, metade dos pacientes do grupo de controle sentir os efeitos da droga, sabemos que este é um efeito ilusório, alcançado por sugestão. Isso porque todos os voluntários sabem o que estão fazendo: o teste de uma nova droga. 


Tais cuidados que previnem o conhecimento direto sobre o quê os voluntários estão de fato recebendo em seus organismos, se fundamentam parcialmente em noções elementares sobre teoria de probabilidades, assunto primariamente estudado no ensino médio de nossas escolas. Como todos os voluntários acreditam na possibilidade de estarem sendo testados com a nova droga, é importante que os envolvidos não tenham certeza se estão realmente a recebendo ou não. Isso porque a probabilidade de uma pílula surtir o efeito da droga em teste, uma vez que o voluntário tem certeza que está ingerindo um placebo, não é necessariamente igual à probabilidade dessa pílula surtir o mesmo efeito diante de um voluntário que tem a certeza de estar submetido à droga. Em geral, há diferenças substanciais entre tais probabilidades, particularmente no teste de drogas que servem ao tratamento de doenças ou distúrbios de ordem psicossomática. 


Voltando ao caso do tribunal de júri, é natural que grupos de pessoas formem líderes. E é natural que esses líderes definam o comportamento do grupo como um todo. No caso do filme acima citado, a personagem de Henry Fonda se firmou como uma liderança, apesar de ter sido inicialmente recebida com grande ceticismo por membros do júri. Foi uma liderança com um resultado aparentemente justo. Mas a questão principal não é se uma decisão foi tomada corretamente. Se não há independência intelectual entre os membros de um júri, por que então escolher doze deles? Se uma só pessoa for capaz de influenciar as demais (o que não é absurdo supor), então bastaria o julgamento deste único indivíduo para definir o destino do réu. Os outros onze jurados mostram-se absolutamente dispensáveis. 


Em teoria de probabilidades sabe-se distinguir entre a probabilidade de um evento A e a probabilidade do mesmo evento A diante de circunstâncias dadas por outro evento B, especialmente quando os eventos A e B não são estatisticamente independentes. No caso do tribunal de júri, a opinião de um jurado é um evento e a dos demais jurados é outro. E comumente esses eventos não são estatisticamente independentes. 


O que queremos dizer com independência estatística? A questão é complicada para ser respondida sem fugirmos dos propósitos da postagem. Mas este é um conceito amplamente conhecido entre estatísticos e matemáticos. Para fins práticos, neste caso, podemos dizer que a independência estatística não ocorre entre os eventos no sentido de que a probabilidade de um jurado tomar a decisão A sem conhecer a opinião dos colegas é diferente da probabilidade de o mesmo jurado tomar a decisão A, conhecendo a opinião dos demais. 


Algo semelhante ocorre em bancas de pós-graduação e de concurso público para docentes em universidades. Uma típica banca de doutorado, por exemplo, conta com cinco membros titulares, sendo que um deles é o orientador de quem defende a tese. No Brasil, o orientador normalmente é o presidente da banca. Ele é o responsável pela condução dos trabalhos de avaliação. Os demais membros são escolhidos pelo próprio orientador e/ou por aquele que será avaliado. É claro que essa escolha está sujeita à aprovação do colegiado do curso; mas orientadores experientes sabem como lidar com nomes de modo a evitar frustrações ou indeferimentos diante de colegiados de programas de pós-graduação. A banca, uma vez formada, deve decidir em sessão pública se aprova a tese de doutorado defendida na forma como está, se a aprova condicionalmente a alterações feitas no texto original, ou se a reprova.


Neste sentido, a escolha de uma banca de doutorado é consideravelmente mais tendenciosa (e, consequentemente, mais estúpida) do que a de um corpo de jurados. Jurados são escolhidos, a partir de um pequeno universo de cidadãos, pelos advogados de defesa e acusação. Já no processo de defesa de doutorado, somente as partes interessadas no sucesso do candidato escolhem os membros da banca. 


Portanto, minha pergunta é: onde está a cientificidade dos procedimentos usuais de formação e aplicação de bancas de pós-graduação? Que diferença faz se uma banca de especialização tem dois professores, uma de mestrado tem três e uma de doutorado tem cinco? Afinal, não é o orientador uma liderança natural? Mesmo no caso em que o orientado aponta possíveis nomes para a banca, a prática mostra que a interferência do orientador é de extrema importância.


É claro que existe orgulho suficiente entre professores doutores pesquisadores para suportar a narcisista crença de que seus julgamentos são (estatisticamente) independentes. Mas se isso fosse verdade, por que não adotar procedimentos mais justos, menos suspeitos, menos sujeitos a severas e pertinentes críticas? 


Podemos mesmo supor independência estatística entre os julgamentos dos membros da banca e o julgamento do presidente desta?


Alguns professores universitários chegam a abraçar a seguinte política sobre participação em bancas: "se eu não concordar com o conteúdo da tese, basta não aceitar o convite; o orientador conseguirá alguém que irá em meu lugar."


E essa postura é um fato extremamente comum. Aqui está mais um exemplo das consequências da não existência de um código ético entre docentes.


Ou seja, uma vez que um professor orientador dê seu aval, é muito difícil que a banca crie confusão. Defesas de monografias, dissertações e teses são geralmente meros rituais acadêmicos que pouco têm a ver com qualquer postura científica. Isso significa que teses científicas devem ter caráter científico, mas a avaliação delas não. Por que será, então, que tão poucos leem teses e dissertações que ficam mofando em prateleiras de bibliotecas? Isso não é sintomático? 


Essa situação não ocorre apenas no Brasil, mas também nas melhores universidades do mundo. O próprio Dawkins, em seu livro citado acima, defende a ideia de que jamais devemos confiar no conhecimento que se justifica por revelação, tradição ou autoridade. Faz-se necessária uma argumentação racional para a defesa de qualquer tipo de conhecimento. Pois bem, a formação tradicional de bancas de pós-graduação é algo que tem se mantido por mera tradição. E, pior, se sustenta em absoluta presunção e vaidade intelectual. Opera como uma liturgia de uma antiga sociedade secreta.


Houve época, em algumas universidades europeias, que o professor orientador tinha que defender a tese juntamente com seu orientado. Isso faz um pouco mais de sentido, mas ainda não elimina o problema de comunicação entre os membros da banca. Tal comunicação ocorre, no mínimo, no dia da defesa da tese; pois o avaliado tem que fazer sua apresentação, seguida de uma arguição da banca, realizada na presença de todos. Mas, na prática, muitas vezes a comunicação entre membros da banca acontece antes da defesa, a qual novamente se denuncia como um mero e hipócrita ritual.


É claro que existe uma argumentação não ignorável em favor da troca de ideias entre membros de uma banca de pós-graduação. Uma vez que um trabalho de ordem intelectual está sendo realizado, faz-se necessária a troca de ideias para avaliá-la. Isso porque uma perspectiva pode estar sendo percebida por um membro da banca e não pelos outros. Mas esse argumento não passa de uma ingênua falácia. 


De fato, o desenvolvimento de um trabalho acadêmico demanda interações entre especialistas. Mas o julgamento sobre os méritos de um trabalho concluído que visa preparação para o ato da pesquisa é outra situação. Analisemos, para fins de ilustração, uma prática internacional que se qualifica de maneira muito mais profissional. 


Quando um pesquisador escreve um artigo e o submete para publicação em um periódico, dois especialistas da área são convocados pelo editor para avaliar o texto. Os dois especialistas são completamente independentes, pois são anônimos perante todos, exceto o editor. Cabe ao editor ler os pareceres, para poder tomar uma decisão. Dependendo do caso, o editor pode se sentir obrigado a consultar outros especialistas, que novamente atuarão de forma independente e no anonimato. Já atuei como avaliador para diversas publicações brasileiras e do exterior, e jamais tive conhecimento sobre quem eram os outros avaliadores. Também já atuei como editor e sempre procurei contato com especialistas de instituições geograficamente afastadas entre si. São procedimentos padronizados que têm garantido, salvo raras exceções, uma boa qualidade de publicação de textos acadêmicos. Por que não usar procedimento semelhante no processo de avaliação de monografias, dissertações e teses de pós-graduação? Se o doutorado é uma iniciação às atividades de pesquisa científica, por que não preparar o candidato para a realidade científica mundial? É por isso que existem tantos doutores no Brasil que jamais publicaram em periódicos internacionais? Estamos formando doutores com mentalidade infantil?


As bancas de pós-graduação mais se parecem com uma demonstração de força do orientador e não com um processo de avaliação do orientado. Há até uma anedota muito inspirada e que ilustra bem essa situação.


Uma raposa passeava por um bosque, quando repentinamente encontrou um coelho. Sua fome não tinha limites, mas a raposa ficou intrigada ao perceber que o apetitoso roedor escrevia sem parar, mesmo notando a ameaçadora presença de uma caçadora impiedosa. A raposa não resistiu e teve que alimentar sua curiosidade antes do estômago.


Raposa: "Olá, coelho. Antes de comê-lo, preciso saber o que estás a fazer."


Coelho: "Estou a escrever minha tese de doutorado."


Raposa: "Ah, é? E qual é a sua tese?"


Coelho: "O coelho é o predador da raposa!"


Raposa (gargalhando): "Sua tese é empiricamente inconsistente, coelho. Tanto é verdade que eu mesma vou comê-lo."


Coelho: "Tudo bem. Vou demonstrar minha tese. Entremos em minha toca, por favor."


Os dois entraram no buraco e então uma feroz luta é ouvida do lado de fora. Em seguida o coelho sai sozinho da sua morada, sem um único ferimento no corpo e sem qualquer abalo emocional.


Dessa vez um lobo se aproxima, também com fome, e vê o mesmo coelho ainda escrevendo sem parar. O lobo, apesar da fome, age como a saudosa raposa. 


Lobo: "Olá, suculento coelho. Antes que te devores, preciso saber o quê estás a escrever."


Coelho: "Minha tese de doutorado, senhor lobo."


Lobo: "Essa é boa. Nunca comi um intelectual. E qual é a tua tese?"


Coelho: "O coelho é predador do lobo!"


Lobo: "Minha piedade sobre tuas pobres ilusões de vida não me impedirão de comer-te aqui mesmo, ingênuo coelho."


Coelho: "Por favor, acompanha-me para a toca. Posso demonstrar minha tese com prazer."


Os dois entram na pequena morada e logo em seguida é possível ouvir os desesperados gritos do lobo em agonia de morte.


Quando o coelho sai novamente da suspeita residência, está acompanhado de um leão. O rei-das-selvas é seu orientador!


No caso de concursos públicos, para fins de contratação de docentes em universidades federais e estaduais, há umas poucas diferenças em relação a bancas de pós-graduação. Não existe qualquer orientador ou tutor que necessariamente tome partido para o lado do avaliado. No entanto, há mecanismos por vezes mais traiçoeiros.


Não são raros os concursos públicos em nosso país que são obviamente direcionados a um profissional específico. O objetivo da instituição que abre o concurso público é a contratação daquele indivíduo! Isso pode ser facilmente conseguido com a redação do edital, a qual é decidida pela unidade administrativa na qual o aprovado será lotado, em caso de classificação. Consequentemente, eventuais outros interessados em um emprego na instituição passam a ser prejudicados sem que o saibam. É uma maneira de instituições públicas contornarem as limitações de autonomia administrativa impostas por governos. No entanto, é também um ato de covardia, na opinião de muitos. No lugar das instituições públicas lutarem seriamente por autonomia, elas adotam esses subterfúgios que denunciam uma contradição no sistema de ingresso na carreira pública de ensino superior.


Vários foram os movimentos de greve em universidades que reivindicavam autonomia administrativa. Mas todos foram silenciados com uma simples negociação salarial, ainda que a negociação envolvesse uma gratificação que sequer fosse incorporada ao salário base. Outro motivo para que eu não seja sindicalizado.


Ainda em concursos públicos para docentes, devemos lembrar que o presidente da banca é, geralmente, membro da instituição que abriu o edital. Além disso, todos os membros da banca são indicados pela unidade administrativa que se beneficiará com o preenchimento da vaga. Isso também propicia outra situação isenta de critérios científicos. O presidente, normalmente conhecido pelos demais membros, pode secretamente orientar a banca no sentido de não aprovar um determinado candidato. Eu mesmo já testemunhei esse tipo de interferência em diversas ocasiões e instituições de ensino público.


Posso garantir o seguinte: É muito difícil crer na existência de bancas verdadeiramente justas, tanto em concursos públicos ou testes seletivos, quanto em programas de pós-graduação. Eu, por exemplo, já fui convidado por um pesquisador para participar de uma banca de qualificação para doutorado simplesmente porque o presidente da banca considerava o candidato fraco. Durante a arguição os demais membros da banca (exceto o presidente, que evitou interferências) elogiaram o projeto. Eu, porém, não consegui aprovar o projeto do candidato porque era obviamente ridículo. Consequentemente o candidato desistiu de sua intenção para ingressar no programa. Ou seja, bastava ter me substituído por outra pessoa (como aqueles professores doutores de mentalidade medíocre) para que o candidato fosse aprovado.


Outro aspecto importante sobre este cenário é o preconceito racial ou xenófobo, notado principalmente após a aprovação de um candidato. É muito comum a presença de estrangeiros nas universidades públicas brasileiras, vindos de países como Peru, China, Rússia, Argentina, Alemanha e outros. E em muitas ocasiões vi alguns estrangeiros perceberem com estranheza certas características da vida universitária brasileira. Quando eles se manifestavam, testemunhei evidente preconceito diante de frases do seguinte tipo: "Não está satisfeito? Volte pra China!" ou "Aqui não é o Peru. É melhor ir se acostumando com os nossos modos."


Não vejo motivos para não nos beneficiarmos das experiências que podem ser assimiladas a partir de outras culturas. Mas assim como houve época em que a contratação de estrangeiros era legalmente proibida em universidades públicas brasileiras, essa xenofobia, praticamente diária em nossas universidades, se parece com algo que está nas raízes da cultura brasileira, mesmo em um suposto ambiente de tolerância, compreensão e razão dos acadêmicos tupiniquins. Talvez isso faça parte até mesmo da cultura de igualdade que se sente em nossas universidades. Diversidade é algo que assusta a muitos, o que justificaria em parte a perpetuação até mesmo das políticas de formação e de ação de bancas de concursos e pós-graduação.


Ou seja, até quando manteremos a farsa de nossas universidades? A farsa das bancas é um fenômeno praticamente mundial. Mas o escândalo velado de nossos concursos públicos é uma afronta contra qualquer noção de civilidade. O que é necessário para o Brasil despertar de sua estupidez? Ou será que já estamos imbecis o bastante para não percebermos nossos mais graves e fundamentais erros? Se este for o caso, só vejo uma solução: abrir mão da soberania nacional e entregar o governo do país nas mãos de nações mais competentes. Não me importo de ser governado por japoneses, alemães ou norte-americanos. Só estou cansado dessa inércia brasileira.




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