Crianças filósofas
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Crianças filósofas



Crianças são capazes de filosofar? 

Há algum tempo tenho dedicado parte do espaço deste blog para tratar de aspectos cognitivos em crianças. Um exemplo foi a postagem sobre como ensinar teoria da relatividade para um público infantil. Outro foi uma discussão sobre o efeito de elogios. E, finalmente, há também um exemplo de experiência pessoal que tive quando discuti sobre realismo com uma turma de quarta série.

Desta vez, no entanto, a meta é a discussão sobre o papel da filosofia na vida de crianças de quatro a doze anos de idade. 

A teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget sugere que crianças com menos de onze anos são incapazes de pensar filosoficamente. Isso porque, segundo o conhecido epistemólogo suíço, crianças não conseguem pensar sobre o pensar. Porém, o mundo mudou bastante desde o pioneirismo de Piaget, apesar de nosso país evidentemente não ter percebido isso. Neste conhecido site, por exemplo, afirma-se que a teoria de Piaget comprova "que os seres humanos passam por uma série de mudanças previsíveis e ordenadas". Porém, filósofos como Matthew Lipman e Gareth Matthews, entre muitos outros, apresentam evidências contundentes de que Piaget ignorou importantes manifestações das próprias crianças que ele mesmo estudou. 

Piaget falhar em seu senso crítico é algo evidentemente muito ruim. Mas a persistência na realização de repetitivas experiências (como se faz em nossas terras) com o único objetivo de validar as ideias deste importante pensador já é um erro grotesco, do ponto de vista filosófico. Está mais do que na hora de pedagogos e educadores brasileiros se atualizarem em termos do que crianças podem ou não podem fazer. Assim como a física não parou com Galileu, a psicologia cognitiva já avançou para muito além de Piaget.

Neste livro, por exemplo, Gareth Matthews motiva suas teses com exemplos reais de crianças com idades entre quatro e seis anos que espontaneamente levantaram as seguintes questões:

1) "Como podemos ter certeza de que tudo na vida não passa de um sonho?"

2) "Se eu vou para a cama às oito horas e levanto às sete da manhã, como posso ter certeza de que o ponteiro das horas do relógio girou só uma vez? Eu tenho que ficar acordado a noite inteira para saber? Mesmo que eu desvie o olhar por um breve instante, talvez o ponteiro das horas gire duas vezes."

3) Em diversas ocasiões um garoto de quatro anos viu aviões decolarem e sumirem à distância em aeroportos. Um dia ele finalmente pega o seu primeiro voo. Após a decolagem e logo depois de receberem o aviso de que os cintos de segurança podem ser soltos, o garoto afirma aliviado para o seu pai: "As coisas realmente não ficam menores aqui em cima."

Apesar destes exemplos ilustrarem claramente questionamentos de caráter filosófico, eles ainda não permitem defender a tese de que crianças sejam capazes de sustentar discussões de caráter filosófico. Mas Matthews motiva suas discussões com outros exemplos muito mais sofisticados, como este:

4) Ian (de seis anos de idade) foi impedido de acompanhar seu programa de TV preferido porque três crianças - filhos de amigos de seus pais - monopolizaram o aparelho de televisão, ao chegarem. E então Ian perguntou à sua mãe: "Por que é melhor três crianças serem egoístas no lugar de apenas uma?" Essa indagação desencadeou uma extensa discussão entre todos os envolvidos, incluindo a falta de consideração das crianças visitantes, o desejo de encontrar uma solução satisfatória para todas as quatro crianças, a importância do respeito aos direitos dos outros e até mesmo como uma outra pessoa se sentiria se estivesse no lugar de Ian. 

Crianças são capazes de filosofar? Há inúmeras evidências de que a resposta seja positiva. E, claro, esta perspectiva inevitavelmente conduz a um novo questionamento: devemos estimular o estudo de filosofia no ensino básico?

Existem pelo menos dois problemas na proposta de implementação da disciplina de filosofia em escolas, tendo como público-alvo crianças entre quatro e doze anos:

I) A grade curricular de nossas escolas de ensino básico já está bastante comprometida com outras matérias.

II) O estudo de filosofia no ensino básico pode ser um fator de distração, que pode transformar os alunos em meros céticos, resistentes ao aprendizado de outros assuntos, como matemática, ciências, história e línguas.

A resposta de Lipman a esses problemas é estimulante. Sua proposta é usar uma disciplina de filosofia com o propósito de promover uma discussão que explorasse as relações existentes entre diferentes áreas do saber. Um exemplo que já foi discutido neste blog, no presente contexto, reside nas relações entre matemática e o simples contar de histórias. Outro exemplo, está na visão social de histórias infantis da literatura clássica. Desta maneira o ensino de diferentes matérias teria um caráter muito menos fragmentado, uma vez que sempre se buscaria por uma visão interdisciplinar de mundo e até mesmo uma percepção do processo educacional como um todo. 

Toda esta proposta de filosofia nas escolas teria como principal meta o estímulo ao senso crítico, algo que tem feito muita falta no Brasil. O que é senso crítico? Segundo Robert Ennis, senso crítico é o "pensamento reflexivo racional focado na decisão sobre o que acreditar ou fazer". Neste contexto, a prática do senso crítico demanda incisividade, informações qualificadas, confiabilidade de raciocínio, mente aberta, flexibilidade, avaliação justa, honestidade para encarar tendências pessoais, capacidade de reconsideração, clareza, capacidade de ordenação de assuntos complexos, diligência na busca de informações relevantes, foco e persistência. 

Já existem muitos estudos que apontam para correlações negativas entre inteligência e religiosidade, inteligência e conservadorismo político e inteligência e radicalismo político. Onde existe resistência irracional a ideias novas, inevitavelmente há um tendencioso caminho que afasta as pessoas de decisões inteligentes. E o estímulo à arte de filosofar desde cedo é um caminho de flexibilidade e contemplação. A capacidade de filosofar é inerente sim às crianças! Se em algum momento esta capacidade se perde, isso se deve a pressões sociais que ocorrem principalmente nas escolas e na unidade familiar. Castrar a capacidade de filosofar de uma criança é um ato de covarde violência, um estupro mental.

Quando se fala em filosofia no Brasil, quase que invariavelmente professores e demais educadores confundem este tema com o estudo de história da filosofia. Filosofar não é concordar com Platão, Descartes ou Russell. Filosofar é a capacidade de apontar onde os grandes pensadores erraram. Afinal, eles foram apenas pensadores e não deuses cuja ira devemos temer. 

Enquanto os expoentes da filosofia brasileira persistirem em sua mediocridade intelectual, jamais haverá exemplos sólidos a serem seguidos por profissionais do ensino de filosofia. Portanto, mudanças precisam ser feitas em todas as direções, do básico ao avançado, da criança ao pesquisador, da escola à família. No momento, nosso país está intelectualmente podre. E todos somos culpados por essa podridão. Sejamos flexíveis o bastante para reconhecer nossa responsabilidade. E sejamos incisivos o bastante para agirmos o mais rapidamente possível.

Para uma rica e abrangente discussão sobre filosofia para crianças, recomendo este excelente link na Enciclopédia de Filosofia de Stanford.




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