A aula que o Brasil perdeu
Matemática

A aula que o Brasil perdeu



A Segunda Guerra Mundial, encerrada 70 anos atrás, transformou profundamente a civilização ocidental, mas não o Brasil. Diante do mais importante evento do século 20, nosso país estava simplesmente deitado em berço esplêndido, tirando uma soneca. Foi esta guerra que separou os homens das crianças.

A Segunda Guerra Mundial foi a Guerra da Ciência e não do campo de batalha. A Alemanha nazista de Adolf Hitler foi extraordinariamente eficiente na elaboração de uma política de pesquisa e desenvolvimento que viabilizou uma sólida parceria entre cientistas, tecnólogos e engenheiros, bem como empresas privadas, para atender a interesses militares governamentais. E as forças aliadas, especialmente Inglaterra e Estados Unidos, entenderam isso muito bem. 

Cito uns poucos exemplos. 

1) A máquina eletrônica concebida por Alan Turing para quebrar os códigos nazistas gerados por outra máquina (Enigma) teve papel crucial em campanhas britânicas contra alemães no Atlântico. Foi uma obra de engenharia concebida por um dos mais brilhantes matemáticos da história e que salvou a vida de milhões de soldados e civis. 

2) A maior parte das mortes de soldados durante a Primeira Guerra Mundial foi causada por perda de sangue resultante de ferimentos. Em função disso e do novo conflito que iniciou em 1939, Edwin Cohn, bioquímico de Harvard, isolou albumina do plasma sanguíneo. Albumina é uma proteína que pode ser armazenada por longos períodos de tempo e facilmente transportada. Essa descoberta salvou a vida de milhões de soldados. 

3) Um dos problemas de logística em qualquer guerra é a distribuição de comida. Samuel Hinkle, químico da Hershey Company, desenvolveu uma barra de chocolate altamente calórica e nutritiva, mas com sabor intencionalmente ruim, para manter soldados americanos permanentemente alimentados em campo de batalha. George Stigler também colaborou neste sentido, resolvendo um problema de otimização hoje conhecido como dieta de Stigler. Foi um trabalho pioneiro de programação linear. 

4) Aparelhos eletrônicos capazes de produzir pulsos de ondas de rádio, em uma direção especificada pela posição de uma antena, são capazes de detectar certos objetos metálicos a grandes distâncias e com muita precisão. Esses aparelhos foram desenvolvidos como projetos secretos em diversos países, durante os anos 1930, incluindo Alemanha, União Soviética, Japão, França, Itália, Inglaterra, Holanda e Estados Unidos. Os norte-americanos batizaram o invento com o nome de RADAR. Era uma tecnologia que permitia inibir ataques-surpresa vindos de terra, ar e mar.

5) A bomba atômica é, sem dúvida, o exemplo mais impactante de parceria entre ciência, tecnologia e militarismo durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar da Alemanha nazista ter investido em seu próprio projeto da bomba, foi uma equipe norte-americana, chefiada pelo físico Robert Oppenheimer, que conseguiu concluir com sucesso essa empreitada. Resultado: genocídio instantâneo de cerca de oitenta mil cidadãos japoneses e coreanos, se levarmos em conta apenas a cidade de Hiroshima. Outros cinquenta mil morreram posteriormente por conta de contaminação radioativa. 

Os aviões a jato Messerschmitt Me 262 foram uma das últimas super-armas da Alemanha nazista, apesar do projeto já existir antes mesmo do começo da Segunda Guerra. Essas aeronaves revolucionaram não apenas a tecnologia militar, mas também a aviação civil. E os mísseis balísticos V2, outra tecnologia de ponta alemã, aterrorizaram e mataram milhares de britânicos e belgas. Estima-se que três mil foguetes V2 foram lançados contra inimigos da Alemanha nazista. 

Com o fim da Guerra, o engenheiro responsável pela tecnologia V2, Wernher von Braun, passou a comandar o programa espacial norte-americano, o que resultou na primeira missão tripulada para a Lua. Os soviéticos também copiaram tecnologia desenvolvida por von Braun e sua equipe. Ou seja, foi a tecnologia alemã que iniciou a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria. 

A participação do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial foi periférica e fortemente influenciada pelos Estados Unidos. Por um lado, os norte-americanos estavam interessados no apoio brasileiro para fornecimento de aço e borracha para os aliados. Por outro, o Brasil demorou muito para enviar tropas para o campo de batalha. Mas, de qualquer forma, a colaboração brasileira não se deu em termos científicos ou tecnológicos. Daí o uso do termo "periférica". 

Cito o triste caso dos soldados da borracha. Milhares de nordestinos migraram para a floresta amazônica, movidos por promessas de riqueza em função de uma parceria entre Brasil e Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto Alan Turing era um soldado que lutava em um laboratório para decifrar os códigos da máquina alemã Enigma, os soldados da borracha trabalhavam em regime semelhante à escravidão e enfrentando doenças tropicais. Ao término da Guerra, eles foram simplesmente esquecidos por nossas autoridades. O governo dos Estados Unidos chegou a enviar dinheiro, como forma de compensação. No entanto, esses recursos foram desviados aqui mesmo, provavelmente para a construção de Brasília, outra empreitada que custou a vida de muitos. Uma análise histórica multifacetada dos soldados da borracha pode ser encontrada no livro In Search of the Amazon, de Seth Garfield. 

Em função dos abusos monstruosos da Guerra da Ciência, foi feita a Declaração dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Isso mudou alguma coisa? Bem. Ainda não ocorreu a Terceira Guerra Mundial. Mas neste link o leitor pode encontrar um levantamento dos cem conflitos militares mais sangrentos desde o fim da Segunda Guerra. Ao todo o mundo já testemunhou 250 conflitos militares nos últimos 70 anos, resultando em 30 milhões de mortes (quantia apenas estimada). E o país que mais marcou presença nestes conflitos foi justamente os Estados Unidos, a nação que hoje lidera a produção de conhecimento científico e tecnológico. 

Brasil é um país que não tem tradição científica, tecnológica ou bélica. E o fato é que ciência e tecnologia, ainda que não tenham finalidades militares, são instrumentos de poder. É um poder que nosso país tem sistematicamente ignorado. E é um poder que, honestamente, faz falta para nós. 

Quando a tcheca Johanna Döbereiner identificou uma bactéria que fixa o nitrogênio ao solo, ela mudou a economia de nosso país. Hoje o Brasil é o maior produtor mundial de soja, graças ao resultado de um único projeto científico. Döbereiner foi também a principal responsável pelo programa Proalcool, referência mundial de tecnologia em combustíveis. No entanto, quem lembra desta que é a cientista mulher mais citada em nosso país? 

Brasil é um país que conta com mentes brilhantes que certamente podem fazer a diferença. Mas a cultura de nosso povo, espelhada em nossos governantes, simplesmente não enxerga isso. 

Quando perguntaram a Hitler como ele ocuparia o Brasil, reza a lenda que ele teria respondido laconicamente: "Eu tomo com um telefonema". Hoje não existe mais a ameaça nazista. Brasil não tem inimigos. Mas também não tem feito muitos amigos. É ainda uma nação-criança, cujos jovens percebem educação apenas como forma de obter contra-cheques menos magros, cujas escolas mantêm professores mal qualificados, e cuja sociedade ignora completamente o poder transformador do conhecimento.

Como sair disso? Continuarmos deitados em nosso berço esplêndido certamente não ajuda. Então, que tal começarmos a estudar ciências? Seria um ótimo ponto de partida. 

O Brasil pode não ter percebido ainda, mas o mundo lá fora está em guerra. Há guerras no sentido convencional, mas há também uma guerra econômica, uma guerra científica e uma guerra tecnológica. Já perdemos a aula da Segunda Guerra Mundial. Vamos perder agora o restante deste interminável e belicoso período letivo? O que é necessário para o brasileiro acordar? Um tapa na cara?




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