Matemática
A Lamentável Metodologia Científica
Quando Charlie Kaufman concordou em roteirizar para o cinema o livro The Orchid Thief, de Susan Orlean, ele sofreu de grave bloqueio artístico. Simplesmente não conseguia adaptar o texto de Orlean para uma linguagem cinematográfica. Foi então que decidiu escrever um roteiro sobre o bloqueio dele para aquela adaptação. O resultado foi o filme Adaptation, de Spike Jonze, obra enaltecida por críticos do mundo todo e com indicações ao Oscar, ao Globo de Outro e ao prêmio BAFTA.
Uma das mais surpreendentes passagens do filme ocorre quando o alter ego de Kaufman, interpretado por Nicolas Cage, tenta decidir se adotará narração em off como recurso linguístico. Afinal, Robert McKee, o mestre dos mestres entre os grandes estudiosos da teoria de roteirização, condena veementemente o emprego de narração em off em qualquer filme. Mas Kaufman decide usar esta técnica narrativa simplesmente porque ele sente que está certo. Ou seja, ele joga fora uma metodologia usualmente empregada na sétima arte: a condenação da narração em off.
Pois bem. O que isso tem a ver com o título da postagem?
Acontece que tanto a concepção de uma obra artística (como um filme) quanto a criação de uma teoria científica têm a criatividade como elemento em comum. E o que é criatividade?
Uma das noções mais usuais estabelece que criatividade é a capacidade de transportar novas ideias para o mundo real.
Neste contexto qualquer curso de graduação que conte com uma disciplina de metodologia científica ou metodologia de pesquisa em seu currículo está perigosamente caminhando para uma direção contrária ao processo criativo da atividade científica.
O desenvolvimento e até mesmo a análise crítica da ciência demandam criatividade. E como explorar a capacidade de criação entre jovens estudantes a partir de metodologias? Qualquer metodologia de pesquisa necessariamente limita opções. E tais limitações operam como cânones que toda a comunidade científica deve seguir, segundo a visão usual de que há uma metodologia científica.
É claro que o exercício de criatividade sempre funciona melhor diante de limitações, ao contrário do que reza a crença popular de que pessoas criativas rompem barreiras. Pessoas criativas não rompem barreiras. O que elas fazem é mostrar que barreiras podem ser percebidas de formas diferentes do usual. Um exemplo bem conhecido é o do engenheiro mecânico que deve projetar um carro potente, mas econômico. Ele deve criar um carro potente que se limite à barreira da economia. Enquanto para algumas pessoas do passado a barreira da economia tinha que impor uma baixa potência para um veículo motorizado, engenheiros criativos conceberam carros econômicos com potência cada vez maior.
Um exemplo bem mais marcante em ciência é a concepção da teoria da relatividade especial de Einstein. Sabendo que as leis da mecânica de Newton são invariantes sob a ação do grupo de Galileu, que as leis dos eletromagnetismo de Maxwell são invariantes sob a ação do grupo de Poincaré e que esses dois grupos de transformações são incompatíveis entre si, como conciliar princípios de mecânica com princípios de eletromagnetismo? A solução foi modificar a visão usual sobre alguns fenômenos da mecânica. Princípios de invariância da mecânica clássica, relativamente a uma noção de espaço absoluto, passaram a se estender para princípios de invariância em um espaço-tempo absoluto. Ou seja, Einstein ainda estava limitado à visão usual de que não se faz física sem invariantes, relativamente a um grupo de transformações. Mesmo assim ele foi extremamente criativo, ao reinterpretar as barreiras que diferenciavam espaço e tempo como uma visão na qual espaço e tempo fazem parte de uma mesma estrutura.
Mas cursos de graduação em áreas científicas, como matemática, física e biologia, entre outros, devem estimular seus alunos a criarem, inovarem. E disciplinas de metodologia em pesquisa ou metodologia científica certamente desestimulam a criatividade. Isso porque alunos passam a ser doutrinados em favor de questionáveis noções, como a de que existem verdades científicas e métodos infalíveis de investigação científica. Em casos mais absurdos ainda, professores de metodologia focam muito mais em normas de diagramação de artigos (como a ABNT) do que no processo criativo em ciência.
Se existe alguma metodologia científica, por que o físico espanhol Juan Miguel Campanario conseguiu fazer um levantamento de trinta e cinco artigos científicos que renderam o Prêmio Nobel mas que sofreram sérias dificuldades para conseguirem ser publicados em periódicos especializados, incluindo até mesmo a revista Nature? Não bastaria aplicar a tal da metodologia para decidir se um artigo científico é digno de publicação?
Metodologia científica deve ser encarada como assunto de discussão entre profissionais do mais alto nível científico, reconhecidos internacionalmente. Metodologia científica não deve ser assunto a ser institucionalmente discutido com alunos de graduação. Alunos de graduação em cursos de natureza científica devem ser estimulados a conceber novas ideias e transformá-las em realidade.
De forma alguma isso significa que ideias novas concebidas por alunos devam ser de alguma forma relevantes, no cenário científico internacional. A bem da verdade, a maioria das ideias publicadas em periódicos especializados hoje em dia não merece atenção alguma. Ou seja, se até mesmo pesquisadores experientes encontram dificuldades para realizar investigações científicas relevantes, quem dirá alunos inexperientes!
O objetivo de estimular a criatividade entre alunos deve ser simplesmente a preparação para a dura realidade da produção científica.
Alunos de últimos períodos de graduação em cursos de ciências devem ser estimulados a criar. Na maioria das vezes essas criações serão duramente criticadas, com ou sem razão, por professores com significativa experiência acadêmica. Mas, eventualmente, um ou outro aluno conseguirá lançar uma ideia que mereça séria reflexão. Quanto aos demais, quaisquer avaliações sobre seus trabalhos devem ser feitas de forma subjetiva e flexível, de acordo com a política educacional do curso.
Se você, leitor, é aluno de último período de um curso de matemática ou de física, deve avaliar se é capaz, por exemplo, de criar um modelo matemático inédito para um determinado fenômeno do mundo real. Se não for capaz de fazer isso, então estuda em um curso muito ruim. Mesmo que seu foco seja matemática pura, ainda deverá ser capaz de criar modelos matemáticos que espelhem o mundo real ou, pelo menos, que permitam resolver problemas da própria matemática. Em qualquer uma das situações, você deve ser capaz de oferecer novas visões que transcendam aquilo que está em livros ou artigos de matemática.
Como discute brilhantemente Joichi Ito, diretor do Media Lab do Massachusetts Institute of Technology, o mundo acadêmico encontra-se hoje exageradamente dividido em disciplinas, o que dificulta uma visão científica mais ampla do universo onde vivemos. Neste sentido, a perpetuação de disciplinas de metodologia de pesquisa apenas compartimentaliza ainda mais quaisquer visões científicas, jogando-as em minúsculas caixas a boiarem em um oceano de dúvidas levantadas pela própria ciência.
Se universidades brasileiras jamais se destacam nas listas das melhores instituições de ensino superior do mundo é porque estamos cometendo erros graves. E um desses erros é a falta de estímulo à inovação. Em suma, chega de metodologia científica! O mundo mudou muito desde Descartes.
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