Autoconhecimento e auto-ilusão
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Autoconhecimento e auto-ilusão



Desde a filosofia de René Descartes até estudos neurológicos sobre a formação de falsas memórias, passando pelos estudos pioneiros de Sigmund Freud, filósofos, psicólogos, psicanalistas, neurologistas e demais pesquisadores têm se dedicado a estudos sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E o surpreendente é que pouco consenso existe sobre esses temas. 

Nesta postagem quero colocar em discussão o que hoje se sabe sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E quero aproveitar para discutir sobre relações naturais entre autoconhecimento e auto-ilusão e fenômenos sociais bem conhecidos: educação, ciência e até tecnologia.

A maioria dos filósofos faz uma distinção entre autoconhecimento e conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos. Autoconhecimento usualmente se refere ao conhecimento que uma pessoa tem a respeito de seus próprios estados mentais, incluindo crenças, desejos, emoções e sensações em geral. No entanto, não parece haver acordo sobre como se adquire autoconhecimento. Alguns dos mais conhecidos modelos para explicar a aquisição de autoconhecimento são a observação não mediada de Descartes, o sentido interior de Locke, o modelo de transparência de Dretske, o modelo de racionalidade (em suas diferentes formas), bem como demais propostas. Para uma revisão dos principais modelos recomendo a leitura deste link

Associada à definição de autoconhecimento existe inevitavelmente o conceito de auto-ilusão. Em linhas gerais, auto-ilusão (ou auto-engano) é a aquisição e manutenção de uma crença - mesmo diante de fortes evidências contrárias - motivada por desejos ou emoções. No entanto, filósofos não conseguem decidir de forma unânime se o processo de auto-ilusão é voluntário ou não, ou sequer se o indivíduo auto-iludido é moralmente responsável por suas crenças. Uma vez que auto-ilusão pode tornar uma pessoa estranha para ela mesma e cegá-la quanto às suas falhas morais, o tema é naturalmente de grande importância, não apenas filosófica, mas também psicológica e até mesmo social. 

YouGov, por exemplo, é uma empresa de pesquisa de mercado que promove inúmeras avaliações de opinião pública, com escritórios espalhados em diferentes partes do mundo. Em uma pesquisa recentemente divulgada, YouGov apontou que 55% da população dos EUA se considera mais esperta do que a média. Como já foi dito por alguns, o norte-americano médio se considera mais inteligente do que o norte-americano médio. Esta é uma evidência muito forte de que a auto-ilusão é um fenômeno bastante comum. 

E mais preocupante ainda é o fato de que existem estudos sistemáticos sobre auto-ilusão coletiva mas não sobre autoconhecimento coletivo. Uma vez que a auto-ilusão coletiva se refere a grupos de auto-iludidos semelhantes entre si ou até mesmo a coletividades que se auto-enganam, fica aqui a sugestão de que ilusões coletivas são mais prováveis de ocorrer do que o compartilhamento de um mesmo auto-conhecimento. E isso faz muito sentido. Por quê? Porque o processo de autoconhecimento é individual. Cada pessoa deve ter um conhecimento único a respeito de seus próprios processos mentais. No entanto, uma mentira (ou ilusão) certamente pode ser compartilhada por coletividades, como a crença dominante do povo norte-americano de que cada um (em média) é mais inteligente do que a média. 

Neste contexto, quais são as relações entre autoconhecimento e o conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos? Bem, se uma pessoa se considera mais inteligente do que outros, existe a tendência natural de ignorar opiniões ou até mesmo conhecimentos daqueles tidos como menos inteligentes. 

Um exemplo interessante de auto-ilusão coletiva é relatado por Robert Trivers, neste artigo. O autor argumenta que a auto-ilusão de um indivíduo pode estimular a ilusão em outras pessoas. E coloca a própria NASA (Agência Espacial Americana) como vítima deste processo. Segundo Trivers, foi o auto-engano institucional da NASA que levou à falha de avaliar com precisão os riscos de uma peça de vedação responsável pela tragédia do ônibus espacial Challenger, em 1986.

Um dos possíveis ingredientes para o fomento de auto-ilusão coletiva é lealdade. É justamente a lealdade de um grupo de indivíduos, perante seu líder, que pode desenvolver uma mesma postura coletiva de auto-engano. E indivíduos desprovidos de autoconhecimento estão naturalmente mais sujeitos à auto-ilusão. 

Em outras palavras, apesar de filósofos estabelecerem que autoconhecimento e o conhecimento sobre o mundo externo a nós mesmos sejam de natureza distinta, isso não impede relações íntimas entre ambas as formas de conhecimento. Afinal, por que uma pessoa acredita em uma teoria científica? Existe justificativa independente de seus estados mentais? Questões semelhantes podem ser feitas sobre crenças religiosas ou até mesmo políticas. Por que uma pessoa confia (ou não confia) no governo federal? Essa confiança (ou desconfiança) é decorrente de justificativas independentes de seus estados mentais? Aquele que crê em algo conhece seus estados mentais, bem como aquilo que os estimula?

Em diferentes partes do mundo tem surgido a crescente preocupação com o papel da universidade perante a sociedade. Há aqueles que defendem que universidades estão ensinando jovens no que pensar e não como pensar. Até mesmo nos Estados Unidos já se percebe a formação de ativistas em universidades, no lugar de acadêmicos. Como distanciar o ativismo político do auto-engano coletivo?

No Brasil jovens estão sendo tratados cada vez mais como criaturas frágeis, delicadas, incapazes de qualquer forma de autonomia. Exemplo marcante são as faculdades particulares que promovem reuniões de pais e mestres. Essa fragilidade pode ser assimilada por gerações inteiras de maneira muito rápida. É um auto-engano coletivo sustentado por comodidade garantida pelos pais desses jovens, os quais também demonstram sinais de auto-ilusão. 

Como evitar o auto-engano coletivo? A verdade é que ninguém sabe. Mas não pensar sobre essas questões e não discuti-las abertamente, sem dúvida, é uma péssima ideia. 




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