Matemática
Fundamentos da Ciência e Fator de Impacto
Tanto pesquisadores e cientistas quanto editores de periódicos científicos frequentemente fazem uma distinção entre ciência e fundamentos da ciência. Nem sempre essa distinção é promovida de forma explícita ou sequer consciente. Mas certamente é colocada em prática no mercado editorial científico, ainda que a fronteira entre ciência e fundamentos da ciência não seja suficientemente clara. Muitas vezes essa prática de discriminação se manifesta simplesmente a partir de iniciativas justificadas por uma simples intuição do pesquisador ou de um editor que deve decidir pela publicação ou não de um artigo. Mas, para não deixar o leitor desorientado sobre o que tento discutir nesta postagem, posso tentar estabelecer um esboço muito simples aqui, para diferenciar ciência de fundamentos da ciência, correndo o risco de ser simplório. Mesmo assim, aqui vai.
A atividade tradicional de desenvolvimento da ciência é a exploração de métodos e técnicas bem conhecidas para, principalmente, resolver problemas que naturalmente surgem no cenário científico-tecnológico. Já a pesquisa sobre fundamentos da ciência visa o esclarecimento sobre os limites metodológicos e epistemológicos de diferentes áreas do conhecimento ou até mesmo a concepção de novas teorias científicas. Posso citar um exemplo muito simples e bem conhecido. A criação do cálculo diferencial e integral por Isaac Newton e Gottfried Leibniz estabeleceu um novo fundamento na prática científica. Já a resolução de equações diferenciais (como a equação do calor, entre outros exemplos) se identifica com a prática científica mais usual, no sentido de empregar os fundamentos do cálculo diferencial e integral para resolver certos problemas específicos. Em suma, o cientista tradicional é um resolvedor de problemas, enquanto o cientista que trabalha com fundamentos da ciência é um delineador ou criador de mundos, os quais devem dar origem a novos problemas.
Neste contexto quero ilustrar a tese de que pesquisas sobre fundamentos da ciência raramente são publicadas em veículos de elevado fator de impacto, apesar do desenvolvimento da ciência depender consideravelmente deste tipo de atividade. E ilustro tal tese a partir de alguns exemplos bem conhecidos em áreas como física, matemática, linguística e filosofia.
O teorema de Bell é um dos resultados mais importantes sobre fundamentos da mecânica quântica. E, até onde sei, foi o primeiro teorema da história a abordar uma questão de caráter metafísico. Basicamente este teorema estabelece que é impossível conceber qualquer interpretação realista e local do universo de fenômenos físicos descritos pela mecânica quântica. No entanto, apesar de milhares de citações em artigos científicos, livros especializados e até mesmo em publicações escritas por leigos, originalmente o trabalho de John Bell foi publicado em 1964 no primeiro volume de um obscuro periódico chamado Physics.
Outro resultado importante, porém mais recente, é devido a Avshalom Cyrus Elitzur e Lev Vaidman. Estes dois físicos israelenses (Vaidman é de origem russa) demonstraram em 1993 que é possível fotografar objetos sem jamais incidir um único fóton sobre eles. Trata-se de outro exemplo claro de pesquisa sobre fundamentos da mecânica quântica, uma vez que Elitzur e Vaidman reacenderam as discussões a respeito de processos de medição sem interação. O tema chegou a ser matéria de capa de Scientific American. No entanto, originalmente foi publicado em um periódico de baixo fator de impacto, a saber, Foundations of Physics.
Saindo do domínio quântico cito mais um exemplo da física teórica. Em 1988 o físico greco-brasileiro Constantino Tsallis publicou uma generalização da estatística de Boltzmann-Gibbs, hoje conhecida como estatística de Tsallis. Trata-se de outro evidente caso de estudo de fundamentos, uma vez que esta obra reavalia consideravelmente os fundamentos da mecânica estatística, estendendo as fronteiras de aplicações deste ramo do conhecimento. Existem mais de dez mil citações ao artigo original de Tsallis. No entanto, o trabalho seminal deste brilhante físico foi originalmente veiculado no Journal of Statistical Physics, um periódico com fator de impacto moderado, dentro dos padrões usuais da física teórica.
Recentemente a mídia nacional ficou eufórica com a notícia do primeiro brasileiro a conquistar a Medalha Fields, o equivalente ao Nobel da matemática. Usualmente ganhadores desta honraria não desenvolvem pesquisas sobre fundamentos da matemática. Mas houve uma exceção: o norte-americano Paul Joseph Cohen. Em 1966 Cohen conquistou a Medalha Fields por ter provado que a hipótese do continuum e o axioma da escolha são indecidíveis relativamente aos demais axiomas da teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Seu trabalho original foi publicado em Proceedings of the National Academy of Sciences, que tem sido tradicionalmente um periódico de elevado fator de impacto. No entanto, vale a pena fazer quatro observações: 1) Cohen era um cientista no sentido tradicional do termo, tendo feito inúmeras contribuições em análise matemática, equações diferenciais e no estudo de grupos topológicos; 2) Cohen não priorizava o estudo de fundamentos; 3) A comunidade matemática internacional ficou pasma diante da ideia de Cohen de criar a técnica de forcing para resolver o problema da hipótese do continuum; 4) O reconhecimento do trabalho de fundamentos de Cohen com a outorga da Medalha Fields é um fato isolado no história deste prêmio.
Talvez o exemplo mais famoso de fundamentação da matemática seja a criação da teoria de conjuntos, pelo russo Georg Cantor, no final do século 19. Porém, Cantor encontrou forte resistência contra as suas ideias e enfrentou enorme dificuldade para publicar seus resultados. Praticamente toda a comunidade matemática de sua época era contrária a noções conjuntistas como a existência de diferentes tipos de infinitudes ou de números transfinitos. O grande matemático francês Henri Poincaré chegou a se referir à teoria de conjuntos de Cantor como uma doença grave infectando a matemática. Mas hoje em dia vastos ramos da matemática são fundamentados em teorias de conjuntos, como a geometria, a álgebra, o cálculo diferencial e integral, a análise matemática, a teoria de probabilidades e a topologia, entre muitos outros exemplos.
Uma das grandes revoluções no estudo de linguística foi devida ao norte-americano Noam Chomsky, no final da década de 1950, quando ele identificou padrões matemáticos nas gramáticas de linguagens naturais. Hoje em dia as gramáticas gerativas de Chomsky são tema de milhares de projetos de pesquisa em todo o mundo, com uma verdadeira avalanche de citações. No entanto, seu trabalho seminal sobre propriedades formais de gramáticas foi publicado em um periódico recém criado (e, portanto, pouco conhecido) chamado Information and Control. Hoje em dia esta revista tem o nome Information and Computation, cujo fator de impacto é 0,604, um valor baixo se compararmos com outros veículos especializados em linguística ou teoria da computação.
A filosofia, neste contexto, se coloca em uma posição extraordinariamente delicada no mercado editorial acadêmico. Isso porque o objeto de estudos do filósofo é tradicionalmente o de investigação sobre questões de caráter fundamental. Cito aqui o exemplo particular da filosofia da ciência. Em 1983 os filósofos Karl Popper e David Miller publicaram um célebre artigo sobre probabilidade indutiva na revista Nature. Como o leitor bem deve saber, a britânica Nature é simplesmente o mais importante periódico científico. No entanto, este trabalho de Popper e Miller é uma solitária exceção na produção filosófica mundial. Periódicos multidisciplinares de elevado fator de impacto como Nature, Science e Proceedings of the National Academy of Sciences praticamente nunca publicam artigos de filosofia da ciência ou mesmo de filosofia em geral. O periódico filosófico com maior fator de impacto hoje em dia é o Natural Language Semantics. E o fator de impacto deste veículo é 2,699, um valor muito pequeno em comparação com a Nature (42,351).
Apesar da óbvia importância do desenvolvimento da ciência tradicional, o estudo sobre fundamentos da ciência é justamente aquele que faz a atividade científica dar significativos saltos, desvendando novas percepções sobre a própria atividade científica em si. Mas a verdade é que estudos sobre fundamentos da ciência continuam a ser discriminados diante de uma visão pragmática e altamente profissional sobre como deve se comportar o cientista em seus projetos de investigação.
É claro que muitas pesquisas sobre fundamentos da ciência apresentam aspectos claramente especulativos, revelando até mesmo uma espécie de preguiça intelectual daqueles que tentam promovê-las. Um exemplo radical disso é o constrangedor evento envolvendo o físico Alan Sokal e o periódico Social Text. Em outros casos, certas investigações sobre fundamentos da ciência mais parecem revelar desejos pessoais de um investigador do que alguma busca legítima por conhecimentos científicos. E de forma alguma isso necessariamente caracteriza algum ato de má fé do pesquisador, mas apenas uma inerente ingenuidade dele. Um exemplo bastante triste sobre este fato é o que aconteceu com o físico japonês Takao Tati. Mas o que não deve ser ignorado é que a qualidade de um projeto de pesquisa precisa ser avaliada com um cuidado que transcende a preocupação sistemática com o fator de impacto de um periódico. Afinal, não são periódicos e nem cientistas que perdem ou vencem na constante batalha do desenvolvimento científico. Os adjetivos "vencedor" e "perdedor" são aplicáveis somente a ideias, quando o assunto é ciência. Henri Poincaré foi um gigante da matemática. No entanto, ele mesmo não soube avaliar as ideias de Cantor, conforme citado acima. Mesmo assim, apesar de inúmeros desgastes pessoais de Cantor, suas principais ideias matemáticas triunfaram com o passar do tempo. E boas ideias conseguem atingir uma longevidade que ultrapassa consideravelmente a existência de qualquer ser humano.
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