Matemática vista como filosofia no ensino básico
Matemática

Matemática vista como filosofia no ensino básico



O maior desafio no ensino de matemática é a transposição de conhecimentos avançados para níveis acessíveis aos alunos. E mesmo conteúdos lecionados no ensino fundamental não podem ser subestimados. Aliás, principalmente os conteúdos mais básicos devem ser estudados de forma extremamente cuidadosa. Desconheço ramo da matemática que seja trivial. Para ilustrar o que digo, considere o que se segue. 

Um professor afirma que a igualdade é uma relação binária que, entre outras propriedades, é transitiva. 

Por que é binária? Alguns dizem que é porque a igualdade se aplica a dois termos. Mas se um termo x somente pode ser igual a ele próprio (x), então certamente, neste contexto, a igualdade não se aplica a dois termos. Portanto, é falso afirmar que a igualdade é binária por se aplicar a dois termos. A verdade é que a igualdade é uma relação binária porque se aplica a duas ocorrências de termos. Note que o plural "termos" na frase imediatamente anterior a esta é usado por conta da limitação de explicar matemática a partir de uma linguagem natural, como o português. Afinal, usualmente é legítimo escrevermos tanto x = x quanto x = y. A fórmula x = x é verdadeira, independentemente do valor de x, pelo menos em teorias usuais da matemática. Já a fórmula x = y é um pouco mais difícil de discutir, como vemos adiante.

Por que se diz que a igualdade é transitiva? A explicação usual em livros e apostilas de matemática básica é a seguinte: porque se x = y e y = z, então x = z

Agora vejamos a seguinte situação. Um professor diz que a solução da equação x - 3 = 0 é x = 3. E, em seguida, ele afirma que a solução da equação x - 4 = 0 é x = 4. Ora, sabendo que a igualdade é também uma relação binária simétrica (se x = y, então y = x), podemos inferir o seguinte: "Se x = 3 (de acordo com o primeiro problema enunciado pelo professor), então 3 = x. Mas temos também que x = 4 (de acordo com o segundo problema enunciado pelo professor). Logo, como 3 = x e x = 4, então 3 = 4."

Esta pergunta foi levantada pelo leitor Leandro Martins Tosta. E é uma questão extremamente pertinente. Por quê?

Se o professor afirma que a igualdade é transitiva (conforme a explicação usual dada acima) e se usa a mesma variável x em dois problemas, por que não se pode concluir que 3 = 4?

Desafio o leitor a responder a esta questão antes de continuar a leitura da postagem. 
...

O fato é que a maneira usual como se define a transitividade da igualdade nos ensinos fundamental e médio é confusa. Em cálculo predicativo de primeira ordem, a transitividade da igualdade é teorema que pode ser demonstrado a partir de duas outras fórmulas, a saber, reflexividade e substitutividade. Além disso, a transitividade da igualdade se expressa a partir de uma única fórmula rigorosamente definida no contexto do cálculo predicativo de primeira ordem. Ou seja, não se faz uso de termos de uma linguagem natural, como o português. E note que comumente professores de matemática e autores de livros e apostilas descrevem a transitividade da igualdade usando termos de linguagem natural, como foi mostrado acima ("se", "e", "então"). E não existe tradução trivial entre símbolos de uma linguagem formal e símbolos de uma linguagem natural, como muitos sugerem. Detalhes sobre a igualdade em linguagens formais podem ser encontrados no livro Introduction to Mathematical Logic, de Elliott Mendelson (Chapman & Hall, 1997). 

Mas não quero discutir tópicos de lógica avançada aqui. Quero discutir como podemos transpor tais tópicos para uma linguagem acessível ao aluno que desconhece lógica matemática. 

Resolver este problema é extremamente importante. Caso contrário, o professor pode facilmente passar a sensação de que matemática é uma disciplina insana. Isso porque ora podemos usar a transitividade da igualdade, ora não podemos. É como se matemática dependesse de caprichos arbitrários de professores e autores de livros e apostilas. No entanto, matemática não é uma atividade insana. Pelo contrário, é a ciência melhor comprometida com qualificação de discurso nos dias de hoje. 

OK. Como explicar ao aluno que não podemos concluir que 3 = 4?

Alunos dos ensinos fundamental e médio sequer sabem o que é uma fórmula. Logo, o melhor que podemos fazer, ao meu ver, é o seguinte.

A equação x - 3 = 0 define um problema específico. Em outras palavras, a equação x - 3 = 0, em parceria com um universo de discurso, define um contexto. O universo de discurso é dado por um conjunto, por exemplo, o conjunto dos números inteiros. A igualdade x - 3 = 0 não é verdadeira e nem falsa, no universo dado. Resolver a equação x - 3 = 0, no conjunto dos números inteiros, significa determinar se há valores para x (números inteiros) tais que x - 3 = 0 seja verdadeira quando substituirmos x por esses valores. Novamente usamos o plural "valores" por conta de limitações da língua portuguesa. Afinal, esta equação, no universo dos números inteiros, admite uma única solução. A solução é x = 3. Ou seja, se substituirmos x por 3 na equação, passamos a ter uma fórmula verdadeira, a saber, 3 - 3 = 0. 

Se considerarmos outra equação, como x - 4 = 0, mudamos o contexto, ainda que assumimos que o universo de discurso é o mesmo, definido pelo conjunto dos números inteiros. Se mudamos o contexto, não podemos aplicar a transitividade da igualdade para concluirmos que 3 = 4. 

Como podemos explicar a diferença de contextos para alunos dos ensinos fundamental e médio? A única solução que percebo é através de exemplos. 

Exemplo 1: Se x - 3 = 0, então x = 3.

Exemplo 2: Se x - 4 = 0, então x = 4.

Exemplo 3: Se x - 3 = 0 e x - 4 = 0, então não existe um único número inteiro tal que, substituindo ambas as ocorrências de x nessas duas equações pelo número inteiro, consigamos obter duas fórmulas verdadeiras.

Ou seja, a propriedade da transitividade da igualdade depende de um dado contexto. Por isso não basta dizer ao aluno que a igualdade é transitiva simplesmente porque "se x = y e y = z, então x = z". Há a necessidade fundamental de inserir esta propriedade em um dado contexto.

Esta é uma ótima oportunidade para provocar o aluno interessado. Basta dizer ao aluno que este contexto pode ser rigorosamente qualificado. Na prática, como se faz isso? Através do método axiomático, em suas formulações hoje conhecidas. 

Essa discussão sobre contexto tem obviamente um caráter filosófico. E, de fato, o estudo dos fundamentos da matemática (disciplina que permite responder a questões como esta colocada por Leandro) é uma atividade filosófica. Portanto, esta é também uma excelente oportunidade para discutir a contraparte filosófica da matemática. Assim como matemática não se faz somente com a repetição impensada de procedimentos automáticos, filosofia também não se faz apenas com especulações. Matemática demanda qualificação de discurso. E filosofia pode ser feita com muita conta. É o que lógicos fazem todos os dias.




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