Matemática
O peso do conhecimento
O grande ícone do jazz Miles Davis dizia que conhecimento é liberdade, enquanto ignorância é escravidão. Para um músico genial e revolucionário que sempre foi vítima de forte preconceito racial, talvez essa afirmação faça algum sentido. Mas, na atividade científica, tal associação entre conhecimento e liberdade é, no mínimo, precipitada.
Kevin Boudreau (London Business School), Eva Guinan (Harvard Medical School), Karin Lakhani (Harvard Business School) e Christoph Riedl (Northeastern University) publicaram em agosto deste ano um preprint no qual é relatada uma extensa análise sobre relações entre projetos científicos e pareceres apresentados por especialistas que devem avaliar o mérito de tais projetos.
Este é um tema que interessa tanto a pesquisadores que buscam obter financiamentos para o desenvolvimento de suas pesquisas quanto aqueles que desejam simplesmente publicar seus resultados de investigação científica em bons periódicos especializados.
Os autores convocaram 142 pesquisadores de uma instituição líder em pesquisas médicas para avaliar 150 projetos, totalizando 2130 pares projeto-avaliador. Ou seja, cada um dos 142 pesquisadores avaliou 15 projetos, escolhidos aleatoriamente. Neste processo avaliadores não sabiam quem eram os autores dos projetos, autores não sabiam quem eram os avaliadores e estes não trocaram ideias entre si. Ou seja, foi um experimento promovido por Boudreau e colaboradores que está em completa sintonia com uma discussão promovida neste blog mais de dois anos atrás, sobre graves inconsistências entre práticas promovidas por bancas de pós-graduação e a atividade científica em si.
No preprint em questão os autores avaliam de que forma a distância intelectual entre o corpo de conhecimento apresentado em projetos de pesquisa e o conhecimento científico do próprio avaliador interfere nos pareceres apresentados. As conclusões apontam para a clara evidência de que os pareceres mais negativos (contrários a aprovação) são dados predominantemente em duas circunstâncias:
1) Quando o projeto submetido se aproxima demais da área de atuação profissional do próprio avaliador e
2) Quando o projeto de pesquisa é extremamente inovador.
Nesta postagem quero focar sobre o item 2.
Em suma, este preprint de Boudreau e colaboradores é mais uma evidência, entre várias já levantadas ao longo da história, de que cientistas não gostam muito de novidades.
É claro que a afirmação acima também precisa ser avaliada com cuidado. Afinal, a atividade científica em si se caracteriza pela busca incessante por novidades relevantes e, preferencialmente, impactantes. A busca por novidades de impacto chega a ser institucionalizada por parâmetros muito usuais, como o fator de impacto de periódicos. No entanto, jamais devemos esquecer que ciência é desenvolvida, estimulada e divulgada por pessoas. E pessoas são sempre tendenciosas.
Se um experiente cientista é confrontado com uma ideia extraordinariamente nova, deve ele admitir que grande parte de seu conhecimento adquirido com tanto esforço ao longo de décadas, repentinamente se torne obsoleto? Qual é o peso psicológico de ideias desafiadoras sobre um profissional que depende de seu intelecto e de seu conhecimento não apenas como forma de sobrevivência, mas até mesmo como forma de autoestima?
Eu mesmo admito ter um interesse pessoal sobre este tema, uma vez que recentemente escrevi um artigo em parceria com Otávio Bueno e Newton da Costa no qual contestamos várias visões dominantes sobre o emprego de métodos formais em linguística. Este trabalho foi brevemente anunciado neste blog pouco tempo atrás e submetido para publicação. No entanto, editores de três periódicos barraram o artigo, sem o encaminharem a referees. A alegação de todos é que nosso artigo não se enquadra no perfil de seus respectivos periódicos. O aspecto mais estranho é que esses mesmos veículos sistematicamente publicam artigos sobre métodos formais em linguística.
Desenvolvemos então uma versão bem mais extensa e detalhada de nosso trabalho e o submetemos novamente, incluindo aplicações muito específicas em fragmentos expressivos da língua inglesa. É uma estratégia para tentar convencer os mais céticos.
Obviamente não podemos ignorar os milhares de casos de pesquisas pseudocientíficas que parecem ser melhor definidas por mera teimosia e não qualquer postura racional. Mas como diferenciar uma boa ideia de simples teimosia irracional? Até hoje não existe uma distinção clara entre ciência e pseudociência.
Isso significa que meu artigo mais recente com Bueno e da Costa pode ser, de fato, uma ideia simplesmente insana. O único problema é que até agora ninguém contestou pontualmente nossa proposta. E, enquanto isso não acontecer, seremos lamentavelmente teimosos.
Em entrevista, Karim Lakhani (um dos autores do preprint mencionado no início desta postagem) disse que ideias novas, aquelas que combinam informações de maneira surpreendente, não são bem recebidas. Ou seja, o conhecimento não nos torna apenas críticos, mas também pode nos transformar em pessoas exageradamente críticas.
Enfim, como já foi discutido em outras ocasiões neste blog, ciência é investimento. E não é apenas um investimento de recursos materiais, mas de ideias. E, como ocorre em todo investimento, sempre existe o risco do fracasso. O brilhante físico japonês Takao Tati que o diga.
Agradeço a Carlos de Brito Pereira pela recomendação do artigo de Boudreau e colaboradores.
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