Por que é difícil compreender definições?
Matemática

Por que é difícil compreender definições?


Matemáticos conseguem ler textos técnicos de medicina, direito, engenharias, sociologia, economia e outras áreas do saber acadêmico com muito menos dificuldade do que um médico, um advogado, um engenheiro, um sociólogo ou um economista consegue ler um texto técnico de matemática. Um dos motivos disso é que textos de matemática exigem muito mais para a sua compreensão do que um mero dicionário técnico possa ajudar. As linguagens matemáticas não encontram tradução trivial para linguagens naturais como português e inglês. No caso das formulações conjuntistas para teorias matemáticas (que, por sinal, são as mais usuais), é seguro dizer que nada do que se diz em tais teorias tem significado correspondente no mundo real, aquele dos fenômenos mensuráveis e perceptíveis direta ou indiretamente pelos nossos sentidos físicos. 


Isso por si só já justifica a dificuldade humana para compreender definições em matemática. Mas nesta postagem quero me aprofundar em um aspecto sobre definições matemáticas bem mais singelo e perturbador. O fato é que matemáticos em geral não têm certeza sobre muito do que discutem em suas atividades profissionais, sejam de ensino, aplicações ou pesquisa. E essa incerteza não é necessariamente fruto de incompetência; pode ser consequência de características inerentemente matemáticas.


As linguagens criadas pelo ser humano podem ser divididas em duas categorias, no que se refere a propósitos e natureza: formais e naturais. As linguagens naturais são aquelas que todos usamos em nossas interações sociais do dia-a-dia, e que carecem de uma definição precisa, como português, inglês, alemão, italiano, entre outras. Todas as linguagens naturais contam com três dimensões fundamentais: sintática, semântica e pragmática. A dimensão sintática se refere às regras gramaticais; a semântica se ocupa do significado de termos empregados nas linguagens naturais (tudo o que se diz deve ter um significado); e a dimensão pragmática se refere ao estudo da linguagem em uso (entre indivíduos comunicantes). 


Já as linguagens formais são concebidas e empregadas em lógica e matemática, e contam com definições rigorosas para vocabulário e sintática. Elas não têm necessariamente compromisso com qualquer contraparte semântica. E mesmo quando há alguma semântica, esta é dotada de uma natureza radicalmente diferente da semântica das linguagens naturais. Em muitas formulações da geometria euclidiana, por exemplo, conceitos como ponto, reta e plano não contam com significado. Um outro exemplo bem conhecido de linguagem formal é a do cálculo proposicional clássico, no qual o conectivo lógico de negação é simplesmente um operador que se aplica a fórmulas, sem obrigatoriamente estar associado a qualquer interpretação intuitiva de negação em linguagens naturais. 


Tanto em linguagens formais como naturais (mesmo que sejam enriquecidas com termos técnicos usualmente encontrados em linguagens formais), definições têm a função de introduzir novas notações linguísticas ou metalinguísticas, de modo que sejam supérfluas, dispensáveis ou elimináveis. 


Na prática definições existem para facilitar o uso de uma dada linguagem, seja formal ou natural. Por exemplo, costuma-se definir metro como 1.650.763,73 vezes o comprimento de onda da radiação do isótopo criptônio 86 no vácuo. Desse modo, em vez de se dizer que uma criança tem uma altura correspondente a 1.997.424,11 vezes o comprimento de onda da radiação do isótopo criptônio 86 no vácuo, simplesmente afirma-se que ela tem um metro e vinte e um centímetros de altura ou, mais abreviadamente, 1,21 m.


É razoável considerar que muitas definições em matemática estabelecem algum tipo de relação de equivalência entre um definiendum (o termo a ser definido) e um definiens (fórmula que efetivamente define o definiendum), de forma que duas condições sejam atendidas: 


(i) Eliminabilidade: toda definição é eliminável, ou seja, a qualquer momento o definiendum pode ser substituído pelo definiens; 


(ii) Não-criatividade: toda definição deve ser não-criativa; em outras palavras, novos teoremas não podem ser obtidos por consequência da definição, de forma que esses mesmos resultados sejam impossíveis de serem demonstrados sem a definição em questão. 


Em geral, testar o critério de eliminabilidade é algo bem mais fácil de ser realizado do que o teste da condição de não-criatividade. E é justamente o critério de não-criatividade que se mostra responsável por uma significativa insegurança entre matemáticos, apesar da maioria deles não pensar muito a respeito disso.


O problema radica na condição que envolve o conceito de demonstrabilidade, ou seja, o critério de não-criatividade.


Uma teoria formal axiomática T é decidível se existe procedimento efetivo para decidir se uma fórmula qualquer de T é teorema. O cálculo proposicional clássico L (como apresentado, por exemplo, em Introduction to Mathematical Logic, de E. Mendelson) é um exemplo de teoria decidível. Sabe-se que todo teorema de L é uma tautologia e que toda tautologia de L é um teorema. Ou seja, basta fazer a tabela-verdade de uma fórmula de L e verificar se se trata de uma tautologia. Se for, é teorema. Isso significa que podemos programar uma máquina de Turing (um computador digital) para verificar se fórmulas de L são teoremas. Por isso o uso da expressão "procedimento efetivo".


No entanto, a matemática de hoje demanda linguagens formais bem mais ricas do que aquela usada para formular o cálculo proposicional clássico L. E quando essas linguagens são empregadas, surgem inúmeras teorias matemáticas indecidíveis. Na prática, em geral não há procedimentos efetivos para decidir se uma dada fórmula de uma teoria formal axiomática qualquer é teorema. Como também não existem procedimentos efetivos para a realização de demonstrações, essa desconfortante característica da matemática, falando em termos práticos, garante o ganha-pão dos matemáticos. Afinal, máquinas são incapazes de fazer a demonstração de um teorema qualquer. E essa incapacidade não se deve ao desconhecimento da existência de algoritmos ainda não descobertos. Sabe-se que tais algoritmos simplesmente não podem existir, pelo menos do ponto de vista do que hoje se entende por algoritmo.


Se considerarmos uma teoria formal axiomática como Zermelo-Fraenkel (ZF, a mais popular teoria axiomática de conjuntos), os matemáticos sequer sabem se ela é consistente. Ou seja, ninguém sabe se existe alguma fórmula G em ZF tal que G é teorema e a negação de G também é teorema. E o aspecto perturbador disso é que ZF é usada para fundamentar vastas porções da matemática tradicional. 


Ou seja, se um pesquisador propõe uma alegada definição que pode ser traduzida para a linguagem de ZF, como saber se a fórmula proposta de fato é uma definição? Se ZF for inconsistente, é claro que a alegada definição é não-criativa, pois todas as fórmulas de ZF seriam teoremas e nada de novo poderia surgir na teoria. Mas e se ZF for consistente? Neste caso, qualquer fórmula apresentada como um suposta definição seria evidentemente criativa se ela conduzisse, por exemplo, a alguma contradição. O matemático poderia então provar uma proposição que garantisse que ZF com a alegada definição é consistente se, e somente se, ZF for consistente. 


Mas isso ainda não resolveria o problema. Afinal, uma fórmula criativa em ZF não precisa necessariamente cair em contradição com os axiomas de ZF. Para se ter certeza de que a fórmula apresentada é uma definição, seria necessário provar que todos os teoremas da nova teoria (ZF com a alegada definição) são também teoremas em ZF, bem como a recíproca dessa afirmação. E dada a produção matemática dos dias de hoje, com uma miríade de novas definições surgindo todos os dias, quantos que efetivamente se preocupam com esse detalhe?


Basta vermos como é comum autores escreverem que, entre os números reais, a/b = c se, e somente se, b for diferente de 0 (zero) e a = bc. Essa suposta definição de divisão entre números reais sequer satisfaz o critério de eliminabilidade! Isso por que, no caso de b = 0, não há como substituir o definiendum a/b por qualquer definiens. Afinal, não há definiens algum para o caso em que b = 0! 


Na maioria esmagadora de livros de cálculo diferencial e integral também se comete erro semelhante, quando são apresentadas supostas definições para limite, derivada e integral de Riemann. Isso porque nem sempre existe o limite, a derivada ou a integral de uma função. Portanto, nesses casos, fica claro que o critério de eliminabilidade não é satisfeito. Portanto, a maioria dos livros de cálculo diferencial e integral não define limite, nem derivada e nem integral. E se tantos autores conseguem ser tão descuidados com o critério de eliminabilidade, o que dizer então da condição de não-criatividade?


Ou seja, quando um matemático supostamente define um conceito novo em uma dada teoria, qual é a garantia que ele tem de que a fórmula apresentada é de fato uma definição? Mais especificamente, como saber se o critério de não-criatividade está sendo atendido? 


Portanto, se você, leitor, não entende uma definição, a pergunta que deve fazer é: por que? A resposta reside em dificuldade intelectual sua ou na frágil fundamentação da matemática apresentada nos livros?




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