Preconceito racial: o desencontro da alteridade
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Preconceito racial: o desencontro da alteridade


...Quando te encarei frente a frente, não vi o meu rosto; chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto; é que Narciso acha feio o que não é espelho... (Caetano Veloso) O personagem Narciso, citado no trecho da música de Caetano Veloso, faz parte do contexto mitológico. Tratava-se de uma criança solitária que morava num jardim. Certo dia sentou-se à beira de um lago de águas puras e cristalinas e, ao debruçar-se sobre ele para matar a sede, viu a sua imagem refletida. Como não conhecia o espelho, ele nunca havia olhado para si próprio. Acabou por se apaixonar pela imagem refletida. Foi assim que Narciso sumiu no lago à procura daquela pessoa por quem se apaixonara. O desejo de iniciar o texto com o mito de Narciso partiu do pressuposto de que ele poderia servir como um referencial ilustrativo que demonstra a origem das dificuldades encontradas nos grupos. Ao observar a descrição do mito, percebemos que talvez o grande descuido de Narciso tenha sido o não-conhecimento, confundindo a sua imagem com a do outro e indo ao seu encontro em um mergulho profundo que resultou em sua própria morte. Assim como Narciso, muitas vezes nos apaixonamos pelo que é nosso, e ao olhar para o outro buscamos o que nos é familiar; e quando não encontramos a nossa imagem refletida, percebemos a diferença como a própria manifestação do "mau gosto", podendo então ser repudiada, discriminada ou até mesmo odiada. Dentro dessa perspectiva, é possível compreendermos que as diversidades existentes entre os grupos étnicos se tornaram pontos de conflito, pois de um lado existe um eu que pensa igual, acredita nos mesmos deuses, vive de modo "estável" e, de repente, percebe que existe um outro que não compartilha das mesmas crenças. Esse contato com o que se mostra de modo distinto do padrão ocorre, em geral, de modo turbulento: perturba e ameaça desintegrar a identidade "estável" da sociedade do eu. A imposição da presença do outro é vivida como a negação dessa aparente ordem. A palavra ordem está vinculada ao desejo de manter a estabilidade. o estágio de constância que é determinado pela manutenção do mesmo esquema social. É atribuído à sociedade do eu tudo o que for mais elaborado ou civilizado. Já a sociedade do outro é marcada pela reificação de idéias etnocêntricas. Caracterizando-se como primitivo, não-humanizado, ele é percebido como um "intruso" que trará a desordem. A palavra desordem, nesse sentido, é percebida como algo ruim. A conotação que lhe é atribuída é de destruição. Para que essa destruição não ocorra, busca a sociedade do eu uma forma de proteger-se desse efeito desestabilizador, mediante a neutralização do desconhecido. Portanto, para evitar o possível caos, busca manter o status quo, para o que é necessário calar o outro, mantendo-o excluído e dominado a fim de permanecer a ilusão do equilíbrio e da ordem vivida na ausência da diferença. Nesse sentido, ao outro é negado o direito de viver a sua identidade étnica, pois o padrão do eu prevalece, e ele o percebe sob uma ótica de estranhamento, desprestígio e não-reconhecimento. Dessa forma, a sociedade do outro passa a ser percebida como ameaçadora, inferior; é vivida de modo odioso, sendo a própria possibilidade da guerra. A coexistência do eu e outros instaura a dimensão do desconhecido, desestabilizando as estruturas vigentes e formando outras novas com direções imprevisíveis. Essa incerteza leva a uma sensação de desordem que, se acolhida de modo satisfatório, poderá ser um momento de grandes transformações e cooperação para a construção de uma nova ordem social. Para que isso ocorra, é necessário reconhecer a relação dialógica entre esses termos, pois eles fazem parte do mesmo processo de construção histórica. Viver apenas uma ou outra seria viver de modo pobre, mutilado. Se houvesse apenas a ordem, não haveria espaço para o novo, o ousado, o criativo. Se houvesse apenas desordem, não haveria capacidade de manter a evolução e o desenvolvimento. Trabalhar na dimensão da incerteza que é suscitada pela presença do outro é elevar o pensamento ao complexo, considerando o múltiplo, o certo e o incerto, o lógico e o contraditório. Mas a sociedade do eu se apresenta de modo totalitário. Nela não há espaço para o novo. Existe a impossibilidade de uma relação dialógica, pois ela não percebe essas diferenças como transitórias e remediáveis pela ação do tempo, ou modificáveis pelo contato cultural. Há uma cristalização de pensamentos em idéias estereotipadas, o que pode deflagrar um mal-estar diante do outro, demarcando uma distância de reconhecimento e prestígio entre sociedades distintas. Tal comportamento é denominado preconceito. Para Heler (1988), o preconceito está pautado em um forte componente emocional que faz com que os sujeitos se distanciem da razão. O afeto que se liga ao preconceito é uma fé irracional, algo vivido como crença, com poucas possibilidades de modificação. O preconceito difere do juízo provisório, já que este último é passível de reformulação quando os fatos objetivos demonstram sua incoerência, enquanto os preconceitos permanecem inalterados, mesmo após comprovações contrárias. Os sujeitos que possuem tal crença constroem conceitos próprios, marcados por estereótipos, que são os fios condutores para a disseminação do preconceito, pois se encontram em consonância com os interesses do grupo dominante, que utiliza seus aparelhos ideológicos para difundir a imagem depreciativa do negro. Nesse sentido, o estereótipo leva a uma "comodidade cognitiva", pois não é preciso pensar sobre a questão racial de modo crítico, uma vez que já existe um (pré) conceito formado, fazendo com que os sujeitos simplesmente se apropriem dele, colaborando para a acentuação do processo de alienação da identidade negra. Esses estereótipos dão origem ao estigma que vem sinalizar suspeita, ódio e intolerância dirigidos a determinado grupo, inviabilizando a sua inclusão social. A conseqüência dessas construções preconceituosas é a manifestação da discriminação, uma ação que pode variar desde a violência física — quando grupos extremistas demonstram todo o seu ódio e intolerância pelo extermínio de determinada população — até a violência simbólica, manifestada por rejeições provenientes de uma marca depreciativa (estigma) imputada à sua identidade, por não estar coerente com o padrão estabelecido (branco/europeu). De acordo com Goffman (1988), o termo estigma é de origem grega e se referia a sinais corporais, uma marca depreciativa atribuída a um determinado sujeito por não estar coerente com as normas e o padrão estabelecidos. Assim, buscava-se evidenciar o seu desvio e atributos negativos com a imputação do estigma, servindo de aviso para os "normais" que deveriam manter-se afastados da pessoa "estragada", "impura", "indigna" e "merecidamente" excluída do convívio dos "normais". A impressão do estigma depende da visibilidade e do conhecimento do "defeito". A partir dessa confirmação, o sujeito torna-se desacreditado em suas potencialidades, passando a ser identificado não mais pelo seu caráter individual, mas de acordo com a sua marca, destruindo-se a visibilidade das outras esferas de sua subjetividade. No caso da população negra, o seu defeito é evidente, já que sua cor a "denuncia", passando então a experimentar no seu próprio corpo a impressão do estigma e, a partir deste, ser suspeito preferencial das diversas situações que apresentam perigo para a população. A princípio, os grupos homogêneos como a família produzem uma cápsula protetora que faz o sujeito se sentir menos agredido, mas, ao entrar em contato com a diversidade social, passará a dimensionar as violentas atribuições dadas as suas diferenças físicas. Desse modo, o momento em que estigmatizados e "normais" se encontram numa mesma situação social é o instante no qual se evidenciam todas as diferenças, causando incômodos para ambas as partes. Nesse encontro, o estigma parece tomar uma proporção ainda maior, e os estigmatizados sentem-se inseguros frente ao olhar do opressor, por não saberem quais atribuições estão sendo dadas. Seria como se fossem cruamente invadidos por avaliações estereotipadas que reduzem a sua identidade ao seu "defeito". Dessa forma, as populações negras foram estigmatizadas no imaginário social como inferiores, primitivas. Os seus costumes e crenças eram desacreditados e considerados ilegítimos ao olhar do branco. Essa condição foi consolidada no imaginário social com a naturalização da inferioridade social dos grupos subordinados. fonte:http://conscienciapura.zip.net/




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