Matemática
Quase-Poesia
Enquanto aguardamos as novidades para o início de 2013, que tal mais um exemplo de interface entre matemática, física e filosofia?
Entre as óperas do século 20, as que mais aprecio foram todas compostas por Andrew Lloyd Webber: The Phantom of the Opera, Jesus Christ Superstar, Sunset Boulevard, Starlight Express, Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat, entre outras. Tive a sorte de testemunhar o negro brilho de The Phantom of the Opera no teatro Majestic, na Broadway, em New York, New York.No entanto, é na ópera Cats (disponível no Brasil em DVD e CD), também de Webber, que há uma leitura excepcional de um dos grandes nomes da literatura mundial: T. S. Eliot. Reproduzo abaixo o único trecho que, de tão extraordinário, simplesmente não foi musicado:
But above and beyond there's still one name left over
And that is the name that you never guess:
The name that no human research can discover
But the cat himself knows, and will never confess.
When you notice a cat in profound meditation
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name
His ineffable, effable, effaninefable
Deep and inscrutable singular name
Name, name, name, name, name, name.
Este é o segredo do nome dos gatos! Segundo Eliot, todo gato tem três nomes: aquele que é dado pelos homens, aquele que é de uso corrente entre os próprios gatos, e um nome oculto e único, que somente o felino realmente o conhece e jamais o revelará a quem quer que seja. É um nome absolutamente insondável.
O trecho acima reproduzido da obra do magistral poeta e dramaturgo de língua inglesa introduz o Capítulo 5 do livro Identity in Physics (Oxford University Press, 2006), do britânico Steven French e do carioca (quase-curitibano) Décio Krause.
A referência a The Naming of Cats é perfeita. Isso porque o livro em questão trata do célebre problema da identidade em ciência.
Quando Heráclito de Éfeso afirmou que o mesmo homem não pode se banhar no mesmo rio mais de uma vez, o mundo ocidental praticamente jogou esta ideia ao próprio rio. A profunda e ampla filosofia de Aristóteles triunfou brilhantemente, com repercussão até os dias de hoje, e Heráclito passou quase que completamente despercebido por filósofos e cientistas. Ainda acreditamos que homem e rio são definidos por algo que os identifica, apesar de ambos mudarem significativamente, com o passar do tempo.
Mas a noção de identidade perdeu significativamente seu status de conceito inquestionável no momento em que surgiu a polêmica mecânica quântica na primeira metade do último século. De acordo com as interpretações usuais desta conturbada área do conhecimento físico, não faz sentido atribuir identidade a partículas elementares, principalmente quando estas se encontram em sistemas cujos estados são descritos através do conhecido emaranhamento quântico.
Não posso detalhar o formalismo envolvido, pois demanda conhecimentos avançados de análise funcional, o estudo de certos espaços vetoriais conhecidos como espaços de Banach e de Hilbert. E isto escapa aos propósitos deste blog.
Mas espero motivar o leitor para problemas ainda não resolvidos e que parecem merecer atenção.
Um exemplo bem conhecido é o do átomo excitado. Se um átomo em estado fundamental é excitado por um elétron, ao retornar ao estado fundamental ele libera justamente um elétron. Mas não há experimento que permita determinar se o elétron liberado é o mesmo que foi utilizado para excitar o átomo. Tal limitação no conhecimento físico ocorre tanto no âmbito experimental quanto teórico. Afinal, é impossível rastrear a trajetória de elétrons. É impossível rotulá-los. Como dizia Erwin Schrödinger (talvez o principal criador da mecânica quântica), não se pode pintar um elétron de vermelho.
Esta ocasional indiscernibilidade entre partículas elementares que compartilham as mesmas propriedades intrínsecas (massa de repouso, carga elétrica, valor absoluto de spin e número de estranheza) é ingrediente fundamental para compreender o comportamento estatístico dos chamados gases quânticos. A mecânica estatística clássica (com distribuições como a de Maxwell-Boltzmann ou de Tsallis) simplesmente não se aplica no domínio quântico.
O grande matemático russo Yuri Manin chegou a questionar, em conferência patrocinada pela American Mathematical Society, em 1974, que ainda vivemos sob o domínio do lugar-comum (herdado de nossas percepções usuais sobre física clássica), ao assumirmos que podemos distinguir objetos. Isso porque a mecânica quântica sugere que uma coleção de partículas elementares (como fótons ou elétrons) tem um caráter muito menos cantoriano do que um punhado de grãos de areia.
Para aqueles que não estão familiarizados com o termo "cantoriano", explico. "Cantoriano" deriva de Georg Cantor, criador da teoria intuitiva de conjuntos, no final do século 19. E, para Cantor, um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si, do ponto de vista de nossa intuição.
No entanto, se quisermos determinar a função-de-onda que descreve o átomo de Hélio (para prever seu comportamento em certos experimentos) jamais podemos nos limitar ao fato de que este átomo é formado por dois elétrons e dois prótons. Se fosse este o caso, bastaria considerar que a função-de-onda do átomo de Hélio é o produto entre duas funções-de-onda do átomo de Hidrogênio (o qual tem apenas um próton e um elétron). Mas não é este o caso! É fundamental levar em conta que as partículas que formam a eletrosfera do átomo de Hélio são fundamentalmente indistinguíveis entre si. Permutações entre elétrons que compõem esta eletrosfera jamais devem interferir na descrição da função-de-onda do átomo, mesmo quando este se encontra em estado excitado.
Procurando investir em uma solução para o problema de Manin, Décio Krause publicou em 1992 um artigo no tradicional Notre Dame Journal of Formal Logic sobre os bizarros quase-conjuntos.
A teoria de quase-conjuntos abre mão da identidade usual e a substitui por uma relação mais fraca, conhecida como indistinguibilidade, a qual é reflexiva (todo termo é indistinguível de si mesmo), transitiva (se o termo a é indistinguível de b e b é indistinguível de c, então a é indistinguível de c) e simétrica (se a é indistinguível de b, então b é indistinguível de a). A principal diferença entre igualdade e indistinguibilidade reside em uma propriedade conhecida entre os lógicos matemáticos como substitutividade.
Em 1999 Décio Krause, Analice Gebauer Volkov e eu aplicamos, pela primeira vez, a teoria de quase-conjuntos para modelar tanto as estatísticas quânticas de Bose-Einstein e de Fermi-Dirac, quanto o estado excitado do átomo de Hélio.
Apesar da teoria de quase-conjuntos ser capaz de reproduzir todos os resultados da teoria usual de conjuntos de Zermelo-Fraenkel (a mais conhecida, entre as teorias atuais), ela ainda consegue antecipar um mundo no qual múltiplos objetos podem ser explicitamente indistinguíveis entre si.
É justamente aí que reside parte da excentricidade da teoria de quase-conjuntos. Do ponto de vista formal, ela trata de um escopo maior do que o universo de discurso da teoria de Zermelo-Fraenkel. No entanto, paga o pesado preço de ser uma teoria na qual é muito difícil de trabalhar, tanto do ponto de vista formal quanto intuitivo.
Durante minha curta estada no Programa de Pós-Graduação em Física da UFPR, lecionei uma disciplina sobre quase-conjuntos e orientei uma dissertação de mestrado sobre o tema, a qual rendeu artigo em Foundations of Physics. Alexandre Magno Silva Santos (rapaz com estranho senso de humor e que adorava imitar o apresentador de televisão Silvio Santos) e eu mostramos que apesar de distinguibilidade ser condição suficiente para deduzir a estatística clássica de Maxwell-Boltzmann, não era uma condição necessária. Ou seja, mostramos que a estatística usualmente empregada em física clássica era compatível com um universo de objetos indistinguíveis (no escopo da teoria de quase-conjuntos). Portanto, indistinguibilidade não implica necessariamente apenas em estatísticas quânticas.
Mais tarde, em artigo publicado em Foundations of Physics Letters, mostrei que mesmo na teoria de quase-conjuntos, sempre era possível rotular termos quaisquer, desde que fossem elementos de uma coleção finita.
Estes resultados, aliados a certas críticas feitas por Nicholas J. J. Smith, colocam em xeque a ideia de que a noção de quase-conjuntos resolve de alguma forma o problema proposto por Yuri Manin em 1974. Afinal, qualquer sistema físico de partículas deve ser, na prática, finito. Neste sentido, o que haveria de não-cantoriano em coleções finitas de objetos contemplados pela teoria de quase-conjuntos?
Desconheço também quaisquer trabalhos que mostrem aplicações quase-conjuntistas em certos problemas-chave da mecânica quântica. Um deles é o teorema da não-clonagem. É bem sabido que o estado de uma partícula elementar pode ser teletransportado, mas jamais pode ser clonado. Ou seja, é impossível "copiar" o estado de uma partícula em outra, sem modificar o estado da primeira. Isso poderia ser interpretado como uma impossibilidade de se obter certos casos de indistinguibilidade? Existem diferentes hierarquias de indistinguibilidade?
Outro problema interessante é a relação entre indistinguibilidade e não-localidade, conforme antecipado por Leonard Mandel (em artigo publicado no periódico Optics Letters, em 1991). Qual seria a versão quase-conjuntista deste resultado? Há consequências não-triviais desta relação em teoremas como o de Bell ou de Kochen-Specker?
Mas o problema que me parece mais importante para resolver é o seguinte: será possível honestamente abrir mão da identidade, aquela relação que permite distinguir objetos entre si? Afinal, quando se afirma que todo termo é indistinguível de si mesmo (na teoria de quase-conjuntos), o que significa este "si mesmo"? Do ponto de vista metamatemático ainda estamos assumindo individualidade, mesmo na teoria de quase-conjuntos. Do ponto de vista metalinguístico (ao avaliarmos a teoria formal), ainda se afirma que este a é indistinguível deste mesmo a. Como descaracterizar a noção de individualidade em uma coleção de um único objeto? Portanto, a herança aristotélica ainda está fundamentalmente enraizada em nossa maneira de ver o mundo e em nossos modos de discursar sobre ele, dia após dia, minuto após minuto.
Ou seja, será honestamente possível descrever de maneira formal a poesia de Heráclito? Ou será que ainda viveremos sob a impressão de que todos os dias acordamos pela manhã como a mesma pessoa que foi dormir ontem?
Enfim, até quando vamos assumir que o terceiro nome do gato de Eliot é apenas uma fábula?
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