Como o vestibular seleciona os piores alunos
Matemática

Como o vestibular seleciona os piores alunos



Leciono na Universidade Federal do Paraná (UFPR) há 25 anos. E o que posso dizer sobre o aluno típico da UFPR? É um indivíduo desprovido de senso crítico, iniciativa, ambição e criatividade. Além disso, o aluno típico da UFPR lê muito pouco. Mas, é uma pessoa que adora obedecer. O aluno típico da UFPR é um indivíduo que sempre demonstra grande preocupação com aquilo que o professor quer. É um cãozinho pronto para adestramento. Se o professor diz "pula", ele pula. E fica muito feliz com manifestações de aprovação de seus mestres, mesmo que sejam referentes a atos tolos.

É claro que há exceções. Há aqueles que questionam seus professores e buscam por novas formas de pensar. Mas alunos assim são raríssimos na UFPR. E têm sido cada vez mais raros.

Há muito tempo me preocupo com esta questão. Por que os alunos da UFPR são tão pobres, intelectualmente falando? Será isso reflexo da realidade brasileira como um todo? Talvez. Mas o fato é que o vestibular, uma das etapas de seleção de novos alunos, certamente colabora para a seleção das piores mentes. E as piores mentes são aquelas que assumem que a melhor política educacional é aquela na qual o professor manda e o aluno obedece.

Recentemente visitei uma página do Curso Positivo, uma instituição de ensino destinada a preparar jovens para o ingresso em universidades. Na página em questão há a lista completa das questões de matemática do Vestibular UFPR 2014/2015. Nos próximos parágrafos apresento algumas das questões, acompanhadas de breves discussões no contexto de minhas preocupações com o perfil dos alunos selecionados para a vida universitária.

Questão 55. O motivo de uma pessoa ser destra ou canhota é um dos mistérios da ciência. Acredita-se que 11% dos homens e 9% das mulheres são canhotos. Supondo que 48% da população brasileira é constituída de homens, e que essa crença seja verdadeira, que percentual da população brasileira é constituído de canhotos? 

Bem. Nesta questão falta um ingrediente fundamental em ciência e, em particular, matemática: qualificação de discurso. Qual é o universo de discurso? Esta alegada crença de que 11% dos homens e 9% das mulheres são canhotos se refere a qual população? É a população brasileira ou mundial? Se for a população brasileira, a resposta 9,96% é consistente com o enunciado. Mas o texto não qualifica. Portanto, se o universo de discurso for a população mundial, certamente deveríamos admitir a possibilidade de que 11% dos homens e 9% das mulheres serem canhotos é apenas uma média mundial, podendo apresentar flutuações em diferentes países e em diferentes épocas. Neste caso, não há uma única resposta, como se espera no enunciado. Para muitos, esta crítica pode soar como mero preciosismo (termo muito usual entre aqueles que adoram nivelar todos a um único patamar intelectual). Mas o que esta questão sugere é que respostas únicas e inequivocamente corretas podem ser dadas mesmo diante de enunciados vagos. Ou seja, não se espera aqui qualquer análise crítica. O que se espera é obediência. Se 11% dos homens e 9% das mulheres do planeta Terra são canhotos, então 11% dos homens e 9% das mulheres no Brasil são canhotos. Pois assim falou o professor. 

Questão 56. Qual é o número mínimo de voltas completas que a menor das engrenagens deve realizar para que as quatro flechas fiquem alinhadas da mesma maneira novamente?

Temos aqui o mesmo problema da falta de qualificação de discurso. Mas desta vez ele é bem mais grave. Em primeiro lugar, a compreensão do enunciado depende da visualização de uma imagem que, acredito, retrata as três engrenagens. Pois bem, repito algo que venho insistindo há muito tempo: matemática não se faz a partir de figurinhas. Usando justamente as tais figurinhas, existem várias falácias matemáticas. Uma das mais conhecidas é a "prova" de que todo triângulo é isósceles. Figurinhas podem ser uma ferramenta didática interessante para o desenvolvimento de intuições. Mas certamente não constituem conhecimento matemático. Em segundo lugar, o enunciado não permite inferir se os dentes das engrenagens têm o mesmo tamanho ou se eles se encaixam. Portanto, mais um exemplo de pensamento normativo em detrimento do pensamento crítico.

Questão 59. O ângulo de visão de um motorista diminui conforme aumenta a velocidade de seu veículo. Isso pode representar riscos para o trânsito e os pedestres, pois o condutor deixa de prestar atenção a veículos e pessoas fora desse ângulo conforme aumenta sua velocidade. Suponha que o ângulo de visão A relaciona-se com a velocidade v através da expressão A = kv + b, na qual k e b são constantes. Sabendo que o ângulo de visão a 40 km/h é de 100 graus, e que a 120 km/h fica reduzido a apenas 30 graus, qual o ângulo de visão do motorista à velocidade de 64 km/h?

Este enunciado carrega um vício que é insistente no Brasil, a saber, a absoluta indiferença em relação a justificativas. Sem qualificar o conceito de ângulo de visão, simplesmente apresenta-se uma fórmula desprovida de qualquer justificativa e diz-se: "Apenas aplique a fórmula e você ficará bem." Em várias turmas minhas já tentei estimular os alunos a criarem modelos matemáticos para descrever o mundo real. Em turmas de cálculo eu apresentava ferramentas básicas de derivação e integração de funções reais e pedia para os alunos desenvolverem modelos elementares de dinâmica populacional. E ainda assim os alunos sempre (sim, sempre) insistem em usar regra de três para resolver qualquer problema. Ou seja, todas aquelas ferramentas apresentadas e discutidas em sala são completamente ignoradas. Em uma turma de último período do curso de matemática, pedi para os alunos desenvolverem um modelo matemático para cobrir certos fenômenos linguísticos. E eles não tinham a mais remota ideia de como usar ferramentas matemáticas para descrever qualquer fenômeno do mundo real, fosse qual fosse. Esta questão 59 é um exemplo formidável. Se o professor apresentar a fórmula, basta o aluno saber aplicá-la. Mas a questão realmente importante é: de onde veio esta fórmula? Justificar a origem de uma fórmula matemática para resolver um problema do mundo real é algo que demanda senso crítico, algo realmente importante em matemática. Mas, na UFPR, bem como na maioria das universidades deste país, jamais se espera senso crítico de seus alunos. O que se espera é simplesmente obediência. Trata-se de uma cega obediência ao professor. Como professores também, em sua absoluta maioria, não pensam, temos assim o moto-contínuo da ignorância.

Questão 62. Um retângulo no plano cartesiano possui dois vértices sobre o eixo das abscissas e outros dois vértices sobre a parábola de equação y = 4 - x^2, com y>0. Qual é o perímetro máximo desse retângulo?

Em 25 anos de docência na UFPR jamais conheci um único aluno de primeiro período que soubesse responder no primeiro dia de aula o que é uma parábola. Certamente muitos alunos conseguem apresentar a resposta correta para esta questão. Mas eles sabem o que estão fazendo? Garanto que não. Estão apenas adestrados a seguir procedimentos, nada além disso. Não têm a mais remota ideia do que é livre pensamento. Na verdade a situação é muito mais grave. Em todas as turmas de calouros que lecionei, jamais encontrei qualquer aluno que soubesse sequer a equação de uma reta qualquer no plano cartesiano. Invariavelmente os alunos respondem que a equação de uma reta qualquer no plano cartesiano é y = ax + b. E quando eu pedia para eles justificarem esta resposta, irremediavelmente respondiam "Foi assim que eu aprendi.". E, pior, isso já aconteceu em turma de último período do Curso de Matemática da UFPR. 

Não quero estender esta breve análise para demais questões do vestibular UFPR 2014/2015. Isso porque vou acabar me repetindo. 

Na página do Curso Positivo há enfáticos elogios a essas questões. Chega-se a afirmar que os enunciados são impecáveis. Ou seja, existe uma perfeita sintonia entre UFPR e Positivo. E esta sintonia gira em torno de uma ignorância jamais percebida. Isso porque provas objetivas não permitem a avaliação de senso crítico. E senso crítico é uma virtude extremamente difícil de ser avaliada. Demanda real preparo dos avaliadores, algo que evidentemente não podemos esperar da UFPR e nem do Positivo. 

Uma contradição que vejo nisso tudo é que a UFPR conta com ótimos professores de matemática. São frequentemente profissionais engajados tanto com docência quanto com pesquisa. Mas, quando o assunto é vestibular, a única coisa que vejo é o estímulo à mediocridade. Por quê? É este sistema de avaliações objetivas que encerra a verdadeira armadilha? Se for, por que não acabar de uma vez por todas com este sistema de avaliação? Por que professores têm que ser obedientes à tradição do vestibular? É justamente esta postura da cega obediência que está contaminando o futuro intelectual de nosso país. 

Moral da história. Não existe qualquer conspiração organizada para destruir a educação brasileira. Eu já ouvi muitos discursos repetitivos e impensados que insistem na visão de que educação ruim para o povo garante a perpetuação do poder de uns poucos. Nada disso. O verdadeiro inimigo da educação brasileira é um só: ingenuidade. E a questão realmente importante é esta: como estimular o senso crítico em uma pessoa ingênua?




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