Estudo Crítico de Cálculo
Matemática

Estudo Crítico de Cálculo




Existem muitos livros de cálculo diferencial e integral no mundo. Muitos! Até no Brasil há inúmeros títulos fora de catálogo e muito mais sendo impressos. Eu mesmo já traduzi para o português vários volumes publicados pela Bookman, todos da Coleção Schaum. Mas ainda existe uma absurda lacuna nessa literatura voltada principalmente para alunos de graduação em ciências exatas e tecnológicas. É claro que alunos de economia e ciências biológicas também consomem livros de cálculo. Mas as deficiências de formação nessas áreas são muito piores. Prefiro não explorar este problema, por enquanto.

Como o tema do ensino de cálculo é extraordinariamente extenso, sou obrigado a focar em uns poucos pontos desta fundamental disciplina. Meu objetivo aqui é apontar para algumas das preocupantes lacunas de formação que percebo tanto na literatura especializada disponível em língua portuguesa quanto na prática da sala de aula. 

É bem sabido que os índices de reprovação em disciplinas de cálculo são extremamente elevados, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Mas o curioso é que mesmo entre os poucos aprovados, praticamente nenhum deles é capaz de dizer o que é, afinal, cálculo diferencial e integral. E isso se deve à absoluta falta da prática do senso crítico no estudo de matemática em geral. 

Em uma primeira abordagem informal, poderíamos dizer que cálculo diferencial e integral é o mais usual conjunto de ferramentas matemáticas que permite descrever formalmente o conceito intuitivo de movimento. Já do ponto de vista histórico o cálculo, como praticamente toda disciplina da matemática, foi muito além.  Sabemos que o conceito de derivada pode ser interpretado fisicamente como uma taxa de variação (de posição, massa, velocidade e outros conceitos físicos) em relação ao tempo. Mas também pode ser associada a um gradiente, ou seja, uma variação de alguma quantia física em relação ao espaço. Mas e do ponto de vista matemático? O que é, afinal de contas, o cálculo?

Qualquer tentativa séria de definir matematicamente esta disciplina está fadada ao fracasso. Isso porque existem muitas formulações para o cálculo que não são equivalentes entre si. 

Usualmente se leciona cálculo em nossas graduações seguindo-se uma ementa bem conhecida: conjuntos, funções, limites, derivadas, integrais de Riemann e equações diferenciais. No entanto, existem outras formas de se fazer cálculo. Um exemplo bem conhecido é a análise não standard, na qual derivadas e integrais não são definidas a partir de limites, mas a partir de operações sobre infinitésimos. Além disso, as integrais de Riemann não constituem de forma alguma qualquer palavra final sobre o conceito de integral. Aqueles que estudaram teoria da medida bem sabem que certas funções não integráveis por Riemann são integráveis por Lebesgue. Para aqueles que estudam matemática fuzzy, sabe-se que podem existir funções constantes não contínuas. E, para piorar a situação, existe uma variedade virtualmente infinita de teorias de conjuntos, tanto formais quanto intuitivas. Portanto, para cada teoria de conjuntos que se adota, desenvolve-se um cálculo diferencial e integral em particular. Logo, não existe o cálculo diferencial e integral como disciplina matemática. O que existe é apenas a intenção de se descrever formalmente uma visão intuitiva de dinâmica. O objetivo de se desenvolver linguagens formais para descrever conceitos como os de taxa de variação ou gradiente é viabilizar um caráter epistemológico claro para as ciências reais, com especial ênfase para a física e as engenharias. 

Ou seja, um estudo crítico sobre cálculo deveria alertar os alunos sobre estes fatos. 

Feito isso, concentremo-nos agora no estudo usual de cálculo. Deixarei de lado, por enquanto, a equivocada visão usual sobre conjuntos e funções, os conceitos básicos para o estudo padrão de cálculo. Normalmente professores e alunos são completamente ignorantes sobre os conceitos usuais de conjuntos e funções. Consequentemente não sabem o que são números reais e complexos. Portanto, serei obrigado a fazer de conta que tais assuntos podem ser ignorados (no que se refere aos seus fundamentos) até um certo ponto de tolerância. Isso porque toda graduação está presa a um calendário que deve estar em sintonia com as realidades do mercado de trabalho. Mas, ainda assim, vejamos a definição usual de limite de uma função real (função cujas imagens são números reais). 

Costuma-se dizer que o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, para todo épsilon positivo existe pelo menos um delta positivo tal que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) temos que f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon). 

Esta definição foi uma das grandes conquistas da matemática, principalmente por permitir extensões que envolvem o conceito de infinito. No entanto, é desanimador perceber que pouco se compreende a respeito de tal conceito. Tanto é verdade que até hoje se ouve e se lê o patético discurso de que 5 dividido por infinito é zero.

Sabe-se, por exemplo, que o limite necessariamente é único, quando existe. Este é o célebre teorema da unicidade do limite, cuja demonstração é relativamente simples. Um estudo crítico sobre limites deveria levar em conta possíveis alterações na definição de limite e a posterior análise de suas repercussões, algo que não vejo discutido em livro algum de cálculo aqui no Brasil. Digamos que alguém tentasse apresentar definições alternativas para limites de funções reais. Quais seriam as consequências disso?

Cito dois exemplos: 

Definição Alternativa 1: o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, existe épsilon positivo e existe delta positivo tal que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) temos que f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon).

Neste caso é possível demonstrar que a unicidade de limite não é teorema. 

Definição Alternativa 2: o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, para todo épsilon positivo e para todo delta positivo temos que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) necessariamente f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon). 

Neste caso a unicidade do limite ainda é teorema. Porém apenas funções constantes admitiriam limites. 

Eu poderia apresentar aqui centenas de definições alternativas para limites, todas não equivalentes entre si. Portanto, para cada definição alternativa de limite existe um cálculo diferencial e integral totalmente diferente do usual. Isso porque normalmente se definem derivadas e integrais como casos particulares de limites. E derivadas e integrais são fundamentais para desenvolver equações diferenciais, aquelas ferramentas empregadas para descrever a dinâmica do mundo físico. Então a pergunta natural é a seguinte: por que se adota especificamente a primeira definição apresentada acima? A resposta novamente repousa sobre a intuição.

Os matemáticos já tinham uma visão intuitiva sobre limites. O que se encontrou na definição acima foi uma descrição formal que resgata a intuição do matemático, levando em conta os objetivos que se desejavam alcançar. 

O curioso é que este resgate formal da visão intuitiva apresenta resultados posteriores que desafiam a intuição. Qualquer bom aluno que tenha estudado um semestre de cálculo sabe da existência de funções que descrevem regiões de comprimento infinito e área infinita as quais, após uma rotação em torno de um eixo, assumem volume finito. Isso significa que o resgate da visão intuiva em uma linguagem formal apresenta características perturbadoras. Por isso mesmo existe uma constante batalha em busca por novas formulações que atendam a novas visões intuitivas.

Trocando em miúdos, qualquer estudo crítico de cálculo demanda um profundo compromisso com a intuição. E intuição é um lado do intelecto que ainda se encontra insondável pela razão. 

Não se estuda seriamente cálculo apenas com procedimentos mecanizados que podem ser repetidos por máquinas. O estudo sério de cálculo exige humanidade. Somos, por natureza, mais do que máquinas triviais. 

Para quem quiser estudar seriamente cálculo, aqui vai uma última advertência: do ponto de vista das teorias usuais de definição, nenhuma das fórmulas discutidas acima é, de fato, uma definição para limites. Consegue descobrir o por quê?
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Mais discussões sobre cálculo podem ser encontradas aqui.




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