Assim, o zero começou sua vida como "ocupante de lugar", um símbolo para indicar um espaço vazio, ou que algo foi saltado.
O crédito para o desenvolvimento do sistema de valor de posição decimal que usamos hoje pertence aos hindus, em algum momento antes de $600 d.C.$. Eles usavam um pequeno círculo como símbolo de ocupante de lugar. Os árabes aprenderam esse sistema no século $IX$ e sua influência gradualmente se espalhou pela Europa nos dois ou três séculos seguintes. Os símbolos para cada dígito mudaram um pouco, mas os princípios permaneceram os mesmo (os árabes usaram o símbolo círculo para representar quantidade, $sunya$, tornou-se no árabe $sifr$, depois no latim $zephirum$ (junto com a palavra ligeiramente latinizada $cifra$), e essas palavras, por sua vez, evoluíram para as palavras $zero$ e $cifra$ em português, Hoje em dia, o zero, usualmente como um círculo ou um oval, ainda indica que alguma potência de dez não está sendo usada.
No século $IX d.C.$, os hindus tinham dado um salto conceitual que é um dos mais importantes eventos matemáticos de todos os tempos. Estavam começando a reconhecer o $sunya$ (a ausência de quantidade) como uma quantidade de direito próprio. Tinham começado a trazer o zero como um número.
O matemático Mahāvīra $(c. 850)$ escreveu que um número multiplicado por zero resulta em zero, e que o zero subtraído de qualquer número não altera o número. Também afirmava que um número dividido por zero fica inalterado. Isso mostra que o conceito de operações inversas ainda não estava era dominado. Bhāskara $(c. 1100)$ afirmava que um número dividido por zero resulta uma quantidade infinita.
O mais importante destas ocorrências não é qual dos matemáticos da Índia teve as respostas certas quando calculando com o zero, mas o fato de eles colocarem tais questões em primeiro lugar. Para calcular com o zero é preciso primeiro reconhecê-lo como "alguma coisa", uma abstração como qualquer outro número, ou seja, é preciso passar a contar uma cabra, ou duas vacas, ou três carneiros, ou pensar em $1, 2, 3$ por eles mesmos, como coisas que podem ser manipuladas sem pensar me quais espécies de objetos estão sendo contados. Temos que pensar em $1, 2, 3,\cdots$ como ideias que existem, mesmo que não estejam contando nada. Então, e só então, faz sentido tratar o zero com um número. Os gregos antigos nunca deram esse passo extra em abstração matemática; isso estava fundamentalmente em oposição a sua ideia de que um número era uma propriedade quantitativa de $coisas$.
O reconhecimento pelos hindus do zero como um número foi uma chave para destrancar a porta da álgebra. O zero, como símbolo e conceito, encontrou seu caminho para o Ocidente, principalmente pelos escritos do estudioso árabe do século $IX$, Muhammad Ibn Al-Kowārizmī. Ele escreveu dois livros, um de aritmética e outro sobre resoluções de equações, que foram traduzidos para o latim no século $XII$ e circularam pela Europa.
Para Al-Kowārizmī, o zero ainda não era pensado como um número, mas apenas um ocupante de lugar, descrevendo um sistema de numeração usando nove símbolos significando de $1$ a $9$. Em uma das traduções latinas, o papel do zero é descrito assim:
Mas quando o dez foi posto no lugar de um, e foi feito na segunda posição, e sua forma era de um, eles precisavam de uma forma para o dez devido ao fato de que era semelhante ao um, podendo assim, saber por meio dela, saber que era dez. Assim, puseram um espaço em frente a ele e puseram um pequeno círculo como a letra o, para que dessa maneira eles pudessem saber que o lugar das unidades estava vazio e que nenhum número estava ali, exceto o pequeno círculo...As traduções latinas frequentemente começavam com as palavras $Dixit$ $Algorizmi$, significando "Al-Kowārizmī disse". Muitos europeus aprenderam o sistema posicional decimal e o papel essencial do zero por meio dessas traduções. A popularidade desse livro como texto de aritmética gradualmente fez com que seu título fosse identificado com seus métodos, dando-nos a palavra "algoritmo".
Conforme o novo sistema se difundia e as pessoas aprendiam a calcular com os novos números, tornou-se necessário explicar como somar e multiplicar quando um dos dígitos era zero. Isso ajudou a fazê-lo parecer mais semelhante a um número. No entanto, a ideia dos hindus de que se deveria tratar o zero como um número de direito próprio levou muito tempo para se estabelecer na Europa. Mesmo alguns dos matemáticos mais proeminentes dos séculos $XVI$ e $XVII$ não queriam aceitar o zero como raiz (solução) de equações.
Contudo, dois desses matemáticos usaram o zero de um modo que transformou a teoria das equações. No começo do século $XVII$, Thomas Harriot $(1560 – 1621)$, que era também um geógrafo e o primeiro medidor de terras da colônia Virgínia, propôs uma técnica simples e poderosa para resolver equações algébricas:
Passe todos os termos da equação para um lado do sinal de igualdade, de modo que a equação torne a forma:\begin{equation*}
[\text{polinômio}] = 0
\end{equation*}
Esse procedimento, que Tobias Dantzig em seu livro $Number:$ $The$ $Language$ $of$ $Science$ de $1967$ chama de Princípio de Harriot, foi popularizado por Descartes em seu livro sobre geometria analítica e às vezes atribuído a ele. É uma parte tão comum da álgebra elementar hoje que o tomamos como certo, mas que realmente foi um passo revolucionário à frente de seu tempo.
Vejamos um exemplo: Para encontrar um número
x para o qual $x^2 + 2 = 3x$ seja verdadeiro (uma raiz da equação), podemos reescrever como:
\begin{equation*}
x^2-3x+2=0
\end{equation*}
O lado esquerdo pode ser fatorado como $(x – 1)(x – 2)$. Agora, para que o produto de dois números seja igual a zero, é preciso que ao menos um deles seja zero (esta é uma outra propriedade especial do zero que o torna único entre os números). Portanto, as raízes podem ser encontradas resolvendo-se em duas equações muito simples:
\begin{equation}
x-1=0
\end{equation}
e
\begin{equation}
x-2=0
\end{equation}
Isto é, as duas raízes da equação original são $1$ e $2$.
Este é um exemplo simples para ilustração, mas muito já era conhecido sobre fatoração de polinômios, mesmo na época de Harriot, de modo que esse princípio foi um grande avanço na teoria das equações.
Quando ligado com a geometria de coordenadas de Descartes, o princípio de Harriot se torna ainda mais poderoso. Usando a terminologia moderna, para resolver qualquer equação com uma variável numérica real $x$
, podemos reescrevê-la como $f(x) = 0$, onde $f(x)$ é alguma função em $x$
. Traçando o gráfico de $f(x)$, as raízes (soluções) da equação original ocorrem quando esse gráfico cruza o eixo dos
$x$. Assim, mesmo que a equação não possa ser resolvida exatamente, um bom gráfico fornecerá uma boa aproximação de suas soluções.
Por volta de $XVIII$, o $status$ do zero tinha crescido de ocupante de lugar para ferramenta algébrica. Conforme os matemáticos do século $XIX$ foram generalizando a estrutura dos sistemas numéricos para formar os anéis e os corpos da álgebra moderna o zero se tornou o protótipo de um elemento especial. O fato de que zero mais um número deixa aquele número inalterado, se tornou a propriedade que define o elemento "identidade da soma" de sistemas abstratos, em geral chamado simplesmente de $zero$ do anel ou corpo; e o fato que um número vezes zero resulta em zero, é a força dominante do Princípio de Harriot, onde se o produto de números for zero, então um deles deve ser zero. Isso caracterizou um tipo particularmente importante de sistema chamado de $domínio$ $de$ $integridade$.
Referências:
[1] A Matemática através dos Tempos – Willian P. Berlinghoff e Fernando Gouvês – Editora Blucher
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