Matemática
Afinal, você é negro ou bonito?
Os programas de cotas nos vestibulares brasileiros são um exemplo claro do despreparo de nossa sociedade para lidar com desigualdades sociais. Ao invés de investirmos seriamente em um país com menos injustiça, criamos programas de cotas para negros e alunos de escolas públicas. Os programas de cotas são apenas uma institucionalização oficial das diferenças sociais que não conseguimos encarar de frente e de maneira responsável. É o reconhecimento de que ainda precisamos dividir as pessoas em classes, a saber, alunos de escolas públicas e alunos de escolas privadas. É a afirmação universitária e governamental de que devemos segregar nosso povo em negros e pardos e o resto. Tal segregação racial é mais grave do que normalmente se julga. Afinal, sempre houve a mentalidade popular de que japoneses e seus descendentes têm desempenho superior nos estudos. Será que não seria então o caso de dificultar o ingresso dessa etnia em nossas universidades públicas? Afinal, os brancos e os negros podem se sentir ameaçados por essa concorrência desleal, dado o desempenho escolar superior de isseis, nisseis, sanseis e yonseis.
E quanto aos descendentes de italianos? Alguém já fez algum estudo sobre a discriminação contra eles? Descendentes de italianos têm oportunidades melhores ou piores do que aqueles que têm origem alemã? E quanto às loiras? Não são constantemente chamadas de burras? Não deveria haver programas da cotas para loiras? E por que discriminação religiosa não conta? Afinal, existem aqueles que são chamados de islâmicos intolerantes e fanáticos, porcos judeus, católicos sem graça, crentes ignorantes, agnósticos desalmados etc. Há também a discriminação estética. Tanto pessoas bonitas quanto feias são diariamente discriminadas no mercado de trabalho. Não são raros aqueles que creem que mulheres bonitas não precisam estudar, pois podem conquistar maridos ricos. E quanto aos feios, nada mais precisa ser dito. Afinal, são feios.
Em parte, os programas de cotas se devem ao fato de que apenas uma minoria tem direito ao famoso ensino público e gratuito das instituições de ensino superior federais e estaduais. O sistema de vestibulares em si é uma violência ao bom senso e a qualquer sentido equilibrado de justiça. O ingresso a universidades é tratado como uma corrida de cães. Não vence o cão que sabe correr. Vence o cão mais veloz. Uma simples gripe pode ser suficiente para prejudicar o desempenho de um vestibulando e atrasar seus estudos pelo período de um ano, ainda que ele tenha estudado com profundo afinco a vida toda. A recente decisão do Governo Federal de substituir o vestibular pelo novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em centenas de universidades não muda o quadro para melhor. Apesar do discurso oficial de que o ENEM deve privilegiar raciocínio sobre simples memorização, o estado atual da educação em nosso país está longe de sequer compreender o que é raciocínio. Por isso, não me importa se o exame seletivo para ingresso em universidades se chama de vestibular ou ENEM; continuo a usar o termo vestibular para designar esta perversão que agora pretende ser mais centralizada, fortalecendo mais do que nunca a forte influência do Governo Federal sobre seus subalternos: os alegados cidadãos.
O que significa a reprovação de um jovem em um concorrido vestibular? Significa que ele não está apto para realizar estudos universitários? Os critérios dos vestibulares são formativos ou seletivos? A pergunta é obviamente retórica. Mas como encarar a inconsistência entre doze anos de estudos formativos e dois ou três dias de avaliação seletiva? Não há interesse em se discutir sobre a diferença entre tais critérios e seu impacto sobre a sociedade e sobre os cidadãos? Uma pessoa pode ser julgada incapaz de realizar uma tarefa (um curso superior) sem ter tido a chance de sequer iniciá-la? É justo que tenhamos escolas públicas ruins? É justo que tratemos negros de maneira diferenciada? Afinal, o que são negros em um país tão miscigenado como o Brasil? Há uma definição de caráter genético para negros? Há algum critério objetivo para a discriminação racial promovida por governos? É justo que não existam vagas universitárias para todos os jovens que sonham com um futuro melhor? É justo que autoridades nos deem migalhas e que ainda tenhamos que agradecer pelo pouco que recebemos, brigando entre nós por uma vaga na universidade? É por isso que nossos filhos se sujam em trotes de vestibular, por viverem em um sistema imundo?
Anos atrás realizei um trabalho voluntário e individual em uma escola pública estadual de Curitiba. Foi um fracasso. Não consegui vencer a barreira da crença cega daqueles alunos de que jamais poderão ingressar em uma universidade. Afinal, para ingressar em uma universidade pública eles não têm conhecimento o suficiente para enfrentar os jovens que têm acesso a cursinhos pré-vestibulares. E para cursar uma universidade privada, não há dinheiro que pague as mensalidades. Iniciei minhas atividades, a contragosto da descrente diretora da escola, com cerca de trinta alunos. Após duas ou três semanas, cheguei em um sábado pela manhã e não encontrei um único estudante. A quem se deve o fracasso? Talvez a mim mesmo. Mas o fato é que, entre os trinta alunos, apenas um admitia a possibilidade de pensar a respeito de vestibular.
Um país com responsabilidade social deve garantir acesso ao ensino superior para todos que assim o desejarem e que demonstrarem desempenho satisfatório em um processo de constante acompanhamento, feito por profissionais da educação da reconhecida competência.
Houve época em minha vida na qual colaborei com a aplicação de provas do vestibular na Universidade Federal do Paraná. Quando percebi que as condições não eram as mesmas para todos os candidatos, tentei fazer algo a respeito, mas a resposta de meus superiores foi a mais estúpida possível: intransigência absoluta. Sequer vale a pena pensar sobre o assunto.
Em geral, os envolvidos na aplicação de provas vestibulares são boçais e ignorantes. Há aplicadores de provas que conversam enquanto os alunos tentam responder a questões, e há uns poucos que conseguem ficar em silêncio durante o mesmo período. Há aplicadores que dão orientações erradas aos candidatos e outros que não fornecem orientação alguma. Há aplicadores que não conferem tempo extra após o término das provas, e há os que agem de maneira oposta. Há até mesmo aplicadores de provas que conseguem fazer comentários perturbadores aos próprios candidatos de suas turmas, provocando desnecessário estresse emocional (complementar). Sabendo que o sucesso ou fracasso no vestibular pode ser determinado por uma única questão, e tendo em mente que mínimos distúrbios de concentração podem ser suficientes para justificar um erro na resposta a uma questão, onde está a justiça deste sádico processo de seleção? Somos criaturas que discriminam até mesmo sob o hipócrita manto da igualdade?
São animais os que aplicam vestibulares e são tratados como animais os que se submetem a isso. E não é minha pretensão ofender os animais. Mas somos verdadeiros porcos mentais.
Ainda que o problema de número de vagas seja difícil de resolver a curto prazo, por que colocar os jovens na corda bamba? Por que o desempenho escolar ao longo de anos não pode contar como crédito? E por que não pensar em termos de entrevistas, cartas de recomendação e avaliação de atividades extra-curriculares realizadas ao longo da vida escolar? Se um jovem brasileiro sonha em realizar estudos universitários, o único período escolar que interessa é o último? E o mais incrível é que a maioria parece encarar isso com naturalidade. Novamente temos o problema cultural de mentalidade porca.
Quem pode ser insano ou estúpido o suficiente para acreditar que doze anos de estudos, do primário ao ensino médio, podem ser avaliados em dois ou três dias, com um grau de sensibilidade que pode depender de uma só questão entre dezenas? A resposta é simples: nossos "professores universitários".
Os "professores universitários" deste país sempre souberam gritar alto quando o assunto é salário. Greve! Greve! Greve! O medíocre e hipócrita discurso da universidade pública, gratuita e autônoma sempre foi afogado com simples aumentos salariais durante os períodos de greve. Os "professores universitários" brasileiros, enquanto classe profissional, demonstram estupidez, insensibilidade, egoísmo e falta de visão. Chegam a reivindicar progressão funcional baseada apenas em tempo de serviço, o que garantiria ascensão de carreira até mesmo para aposentados. Com a estabilidade de emprego garantida, todos teriam progressão garantida. Isso é demonstração de inteligência ou justiça? Se nosso futuro depender do atual sistema de ensino universitário público, não há nada além de miséria adiante.
É claro que em discursos individuais, conheço muitos professores universitários que são contra o vestibular. Mas algo é feito para mudar? Mesmo instituições privadas de ensino superior, que também poderiam insistir por métodos mais justos do que vestibulares, continuam a perpetuar esse massacre social. Há universidades privadas que encaram o fato de que o número de candidatos inscritos em vestibular é praticamente igual ao de vagas. E ainda assim insistem no concurso vestibular. Ou seja, o vestibular é um fenômeno cultural praticamente acima de suspeitas no Brasil. Não há movimentos articulados contrários a ele. Ficamos acostumados, acomodados.
Sempre critico a estabilidade dos professores universitários, a qual forma sistematicamente profissionais amorfos, preguiçosos. Mas será que esse comodismo não é uma característica inerente do povo brasileiro? E, além disso, agora estamos fortalecendo a discriminação? No que exatamente estamos nos transformando?
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