Matemática
Erros que funcionam muito bem
Na última postagem discuti um pouco a respeito do papel da intuição para o físico. Apresento aqui um exemplo de intuição que considero emblemático, apesar de pouco conhecido. Trata-se de um determinado modelo, devido ao astrônomo francês François Mignard, para explicar a influência das marés terrestres e oceânicas sobre a órbita da Lua, nosso único satélite natural.
Consideremos inicialmente que o sistema Terra-Lua é isolado. Ou seja, estamos ignorando os efeitos gravitacionais do Sol e de todos os demais corpos celestes do universo. Esta é uma primeira aproximação do modelo. É importante dizer, para evitar o espanto de leitores pouco familiarizados com este procedimento, que físicos adoram aproximações!
Sabe-se que a Lua provoca marés terrestres e oceânicas sobre nosso planeta, devido à atração gravitacional que ela exerce sobre a Terra. Esta já é a segunda aproximação! Afinal, estamos usando gravitação newtoniana. Ou seja, são ignorados efeitos relativísticos que poderiam melhorar o modelo, principalmente em escalas astronômicas de tempo.
A força gravitacional da Lua sobre o ponto mais próximo da Terra é desprezível, se compararmos com a força gravitacional do próprio planeta sobre este ponto. Isso porque a atração gravitacional newtoniana é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre os corpos que interagem. E a Lua está muito distante da Terra (mais de um segundo luz). No entanto, a força gravitacional que a Lua exerce sobre os pontos tangenciais do nosso planeta encontram uma resistência bem menor, devida principalmente ao atrito das águas dos oceanos e da própria crosta terrestre com camadas inferiores do planeta. A componente gravitacional da Terra se torna praticamente desprezível nestes pontos, pois ela forma um ângulo muito próximo de noventa graus com o vetor de força gravitacional da Lua.
Tal atração provocada pela Lua produz os chamados bulbos de marés: dois bulbos altos e dois baixos, conforme a imagem abaixo (as escalas estão naturalmente exageradas, para fins de ilustração). Por isso há quatro mudanças diárias de marés!
Porém, quando os bulbos de marés se formam, a Lua já transladou em sua órbita e a Terra já rotacionou em torno de seu eixo. Desse modo, há um atraso de resposta na formação dos bulbos. Tal atraso é estimado em cerca de dez minutos e está representado pelo ângulo entre os dois segmentos de reta da imagem acima. Um dos segmentos representa a posição anterior da Lua, quando deu-se início à formação dos bulbos. O outro corresponde à posição relativa da Lua após a formação dos bulbos. A importância do atraso de resposta na dinâmica de marés foi antecipada pela primeira vez por George Darwin, filho de Charles Darwin, o criador da teoria da evolução das espécies.
Diante dessa dinâmica, ocorrem então as correntes de marés. Ou seja, esses bulbos circulam ao redor do nosso planeta. As forças de atrito com camadas inferiores à superfície geram calor e consequente perda de energia total do sistema. Mas se há perda de energia, a Terra gira cada vez mais lentamente com o passar de milhões de anos. Logo, ela perde momento angular. Como consideramos o sistema Terra-Lua gravitacionalmente isolado, seu momento angular total deve ser constante. É o mesmo princípio que justifica o funcionamento do giroscópio ou do pião. Isso significa que a Lua ganha momento angular, como forma natural de compensação. Como nosso satélite natural não pode nos orbitar mais rapidamente (pois, para isso, deveria ganhar energia), a maneira natural de ocorrer tal ganho de momento angular é com o aumento do raio orbital. Isso significa que a cada dia a Lua se afasta de nós.
O que se tem aqui, portanto, é o famoso problema de três corpos: Terra, Lua e marés. E, na gravitação newtoniana, não existe solução analítica (expressa na forma de funções polinomiais, trigonométricas, exponenciais ou logarítmicas) para tal problema. A solução prática é apelar para métodos numéricos, os quais são apenas aproximados.
Uma vez estabelecido o modelo qualitativo, o próximo passo é expressar matematicamente o potencial gravitacional perturbador das marés por meio de uma série infinita de polinômios de Legendre (uma ferramenta muito comum em física-matemática). Usando argumentos meramente intuitivos, considera-se apenas a primeira parcela dessa série. Ou seja, as demais infinitas parcelas da série são simplesmente descartadas, sem qualquer preocupação com o valor da soma delas; o que nos leva à terceira aproximação! E este é o tipo de aproximação que assombra qualquer matemático. Afinal, matematicamente falando, "aproximação" aqui significa simplesmente "erro grotesco"! Mas físicos não se importam muito com a opinião de matemáticos.
Em seguida uma versão modificada dessa primeira parcela da expansão infinita em polinômios de Legendre é novamente expandida, mas desta vez na forma de uma série de Taylor, cuja variável é o atraso de resposta já mencionado. Tal série é novamente infinita.
Usando argumentos meramente intuitivos, considera-se apenas a segunda parcela de tal expansão, descartando-se todos os demais infinitos termos positivos. Esta já é a quarta aproximação! E, neste momento, já não é possível compreender a desesperadora angústia do matemático.
A partir dessa nova expressão são obtidas as equações diferenciais que descrevem a dinâmica do raio orbital médio, da excentricidade de órbita e da inclinação do plano orbital de nosso satélite natural relativamente ao plano absoluto (o plano ortogonal ao momento angular total do sistema, o qual é invariante e, portanto, opera como referencial inercial).
Como essas três equações diferenciais são altamente não lineares e bastante complicadas, não existe solução analítica para elas. Então apela-se a um método numérico aproximado, conhecido como Runge-Kutta de quarta ordem. Com este método grosseiro, temos finalmente a quinta aproximação! Lembro que décadas atrás a NASA usava Runge-Kutta de décima segunda ordem para simular vôos espaciais. Mas vale lembrar que uma resposta precisa por Runge-Kutta deveria ter infinitas parcelas; algo impossível de ser processado por computadores.
Enfim, após cinco aproximações injustificadas racionalmente (verdadeiros pesadelos para qualquer matemático), qual é o resultado final dessas contas em comparação com os fatos?
Na superfície da Lua há espelhos de silício instalados pelos astronautas do célebre Projeto Apollo. Observatórios de nosso planeta disparam raios laser na direção desses espelhos e aguardam o retorno. Como a velocidade da luz é conhecida com grande precisão, é possível medir a velocidade com que a Lua se afasta de nós, a qual é um valor entre dois e quatro centímetros por ano. Pois bem. Agora vem a parte dramática da história. Acontece que, após todas aquelas aproximações grosseiras acima mencionadas, este modelo se mostra em perfeito acordo com tais medições de extrema precisão.
Mas esta não é a única forma de verificação do modelo.
Examinando fósseis de corais rugosos do Período Devoniano (que viveram cerca de quatrocentos milhões de anos atrás) paleontólogos conseguem estimar a duração do ano em dias, naquela época remota. Isso porque muitas formas de vida na Terra têm seus ciclos vitais governados por períodos astronômicos, como o mês sinódico e o dia solar. É algo análogo aos anéis que se encontram em muitos troncos de árvores. E a partir desse exame, chegou-se à conclusão de que quase meio bilhão de anos atrás o dia na Terra durava vinte e duas horas, contra as vinte e quatro de hoje. Isso se deve ao fato de que, apesar do ano ser imutável em termos de duração, a Terra girava mais rapidamente em torno de seu eixo. Ou seja, os dias eram mais curtos e, consequentemente, os anos tinham mais dias. E novamente a previsão deste modelo exageradamente aproximado está em pleno acordo com tais observações paleontológicas! Isso porque a integração numérica por Runge-Kutta permite simular o futuro e o passado remoto do sistema Terra-Lua.
A pergunta natural agora é: Como isso é possível? Que raio de magia é essa? Como pode um modelo resultante de cinco aproximações grosseiras estar em pleno acordo com medições tão precisas e tão distantes em escalas de tempo? A única resposta que posso apresentar é aquela dada pela minha ex-colega do Departamento de Matemática, mencionada na última postagem: devemos confiar nos físicos.
Mas o modelo de Mignard tem limitações (surpresa?). Ele considera o atraso de resposta constante. A consequência disso é que a integração numérica para escalas de tempo maiores do que dois bilhões de anos no passado estão em desacordo com teorias modernas sobre a gênese do sistema Terra-Lua. O astrônomo Germano Bruno Afonso e eu elaboramos as ideias de Mignard para incluir um atraso de resposta que diminui com o tempo. Dessa forma conseguimos pleno acordo com o fato de que Terra e Lua nasceram há cerca de 4,5 bilhões de anos. De acordo com nosso modelo, no futuro distante, a Lua não mais se afastará da Terra. Com o passar do tempo o atraso de resposta diminuirá até chegar a zero minutos. Quando isso ocorrer, a Lua estará perfeitamente alinhada com os bulbos altos de marés terrestres e oceânicas. Ou seja, um dia ela será geoestacionária.
Como a Lua tem uma massa inercial muito inferior à da Terra, ela atingiu este ponto de equilíbrio logo no início da formação do sistema solar. A Lua também tem bulbos de maré na superfície, provocados pela gravitação da Terra. Mas como ela atingiu o ponto de equilíbrio em poucos milhões de anos, hoje a Terra está em posição perfeitamente alinhada com os bulbos de marés lunares. Por isso a Lua tem sempre a mesma face voltada para a Terra! Um dia a Terra terá sempre a mesma face voltada para a Lua. Mas até isso acontecer, o Sol já terá expandido na forma de uma gigante vermelha e nenhuma forma de vida existirá em nosso mundo, incluindo naturalmente este blog.
Praticamente toda a física opera dessa forma, que é um misto de razão com uma intuição (mágica?) não qualificada. Nas teorias de gauge (correspondentes às formulações atuais para campos), por exemplo, a matemática é rigorosamente seguida. Em compensação há monumentais lacunas no que se refere à interpretação física de certos conceitos, como as infames cópias de gauge, entre outros. Lembro, por exemplo, que anos atrás publiquei no britânico Journal of Physics A e no americano Journal of K-Theory resultados de pesquisa nos quais mostrei (em parceria com Francisco Doria e Newton da Costa) condições analíticas necessárias e suficientes para a existência das chamadas cópias de gauge. Um dos avaliadores do primeiro trabalho deu um parecer muito curioso. Ele recomendou a publicação justamente porque pouco se sabe sobre esse misterioso fenômeno. Em contrapartida, tive um artigo sobre eletrodinâmica quântica recusado por um periódico de física porque o parecerista alegou que, apesar de as contas estarem certas, ele não acreditava no resultado. Fui obrigado a publicar em uma revista de matemática! Lá me senti compreendido.
Levando em conta a tradição platônica de que conhecimento científico é uma crença verdadeira justificada, o que exatamente seria uma justificativa senão uma ideia cujo único critério de aceitação é o social?
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