Matemática
Matemática é uma ciência exata?
Nomes não são meras arbitrariedades humanas. Nomes desempenham um papel relevante do ponto de vista social e até individual, sejam dados a pessoas, produtos ou ramos do conhecimento.
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, "exato" significa "que não contém erro", "que tem grande rigor ou precisão", "perfeito", "irretocável". E é um costume dominante se referir à matemática como uma ciência exata. Este nome, "ciência exata", frequentemente tem levado pessoas - entre leigos e até profissionais - a crerem que matemática é uma ciência livre de erros, com grande rigor e precisão, perfeita e irretocável.
Mas uma coisa é a impressão que o nome "ciência exata" pode passar, do ponto de vista meramente intuitivo. E outra é o que a prática matemática mostra no cotidiano de experientes cientistas e investigadores.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que matemática é uma atividade intelectual desenvolvida por seres humanos. E seres humanos, como bem mostra a prática, são criaturas falíveis.
Pensando nisso, Vladimir Voevodsky, matemático russo ganhador da Medalha Fields em 2002, tem sido um dos mais importantes defensores do uso de computadores para a verificação e até o desenvolvimento de demonstrações de teoremas. Usando um formalismo hoje conhecido como Fundamentos Univalentes, Voevodsky defende uma maior proximidade entre linguagens formais da matemática e linguagens de programação de computadores. Uma reportagem sensacionalista e altamente tendenciosa publicada em Quanta Magazine chega a se referir a esta proposta como uma tentativa de eliminar a possibilidade de erro humano. E, mais que isso, afirma-se que o emprego de computadores pode determinar se uma demonstração matemática está correta, com absoluta certeza. Parte deste sensacionalismo é responsabilidade do próprio Voevodsky, o qual abraça esta causa com grande fervor.
Ora, além do fato de linguagens e programas de computador ainda serem criados e desenvolvidos por seres humanos, deve ser ponderado também que o desempenho de qualquer máquina não trivial apresenta limitações matemáticas intrínsecas já antecipadas décadas atrás pelo pai da atual teoria da computação, Alan Turing. Ou seja, é ingenuidade confiar cegamente na impossibilidade de erro, no que se refere ao desempenho de um computador destinado à verificação de correção de demonstrações. E muito menos se pode confiar em computadores para uma devida fundamentação de ramos específicos da matemática, como se sugere na reportagem de Quanta Magazine.
A proposta de Fundamentos Univalentes tem naturalmente o seu mérito. Matemáticos, como bons humanos que são, cometem erros muitas vezes não detectados sequer por referees, antes da publicação de artigos científicos. O próprio Voevodsky já foi vítima disso. Em 1999 ele descobriu um erro de demonstração em artigo publicado por ele mesmo sete anos antes. Além disso, hoje já se desenvolve matemática experimental, ramo do conhecimento que tem como meta a investigação de objetos, propriedades e padrões matemáticos através do emprego de recursos computacionais e demais métodos semelhantes. No entanto, assim como lápis e papel, computadores ainda devem ser vistos como meras ferramentas de auxílio investigativo e não como soluções definitivas para se desenvolver matemática.
Durante minha estada na Universidade Stanford, nos anos 1990, Patrick Suppes
, Acácio de Barros e eu tínhamos que calcular derivadas de ordem superior de uma função dependente de uma integral imprópria, para determinar a força de Casimir entre duas placas sob certas condições bem específicas. Usando um software de computação algébrica, a resposta impressa foi um relatório de três páginas quase incompreensíveis. Fazendo exatamente as mesmas contas sem auxílio de máquina alguma, a resposta que obtive se resumiu a meia página e uma expressão muito clara. Para detalhes, ver o Apêndice deste artigo
.
No Brasil o estudo de Fundamentos Univalentes ainda caminha lentamente. Uma dissertação interessante sobre o tema pode ser encontrada aqui. Mesmo assim, é aconselhável que jovens interessados nesta fascinante e bem sucedida área interdisciplinar não se deixem levar fácil pelo exagerado entusiasmo de respeitáveis autoridades como Voevodsky. Matemática ainda é uma atividade social que demanda crítica. E computadores, por melhores que sejam, não devem ser percebidos como inteligências acima da crítica.
Mesmo em ramos da matemática que naturalmente demandam considerável nível de formalismo e rigor, como lógica e fundamentos, existem indispensáveis métodos não dedutivos de investigação. Um exemplo é a geração de conjecturas. Criar conjecturas não é uma tarefa difícil para um ser humano. Mas é algo ainda inacessível a máquinas. E mesmo que uma conjectura seja formulada (por máquinas do futuro ou por seres humanos) como definir se ela vale a pena ser investigada? Devemos adotar critérios meramente matemáticos e formais? Devemos adotar critérios dependentes de potenciais aplicações? Ou devemos levar em conta prazos determinados por burocratas que controlam a distribuição de verbas para pesquisa? Computadores conseguem responder a essas questões sem errar? Como garantir, sem erro, se uma conjectura vale a pena ser investigada?
Matemática não se resume àquilo que já está pronto e publicado em livros e artigos. Matemática é também uma atividade em andamento. E é uma atividade em andamento que depende fundamentalmente de ideias, inspirações, intuições.
A própria visão intuitiva sobre a natureza da matemática, enquanto produto final de um esforço coletivo, é algo que muda com o tempo. Houve época em que axiomas eram considerados afirmações auto-evidentes. Essa visão deriva, em parte, da geometria apresentada por Euclides, dois milênios atrás. Hoje se sabe que um sistema axiomático pode contar com operações binárias que podem ou não ser comutativas. Ou seja, é auto-evidente que uma operação binária deva ser comutativa? Portanto, nos dias de hoje, axiomas são simplesmente fórmulas usadas como ponto de partida para a inferência de novas fórmulas em uma dada teoria, desde que regras de inferência sejam estipuladas.
Outro exemplo de flexibilidade de ideias reside nas próprias regras de inferência da lógica matemática. A mais usual é Modus Ponens. Trata-se de um argumento que permite inferir uma sentença "B" a partir de duas outras sentenças: "A" e "A implica B". Mas e se algum matemático quiser criar uma teoria na qual "A" e "A implica B" permita inferir a negação de "B"? Do ponto de vista lógico nada impede que se desenvolva toda uma nova matemática a partir disso. Neste momento entra outro método não dedutivo para o desenvolvimento da matemática: justificativa.
A arte de justificar uma ideia matemática depende de contextos que podem transcender a própria matemática. Por exemplo, há alguma perspectiva realista de aplicação de uma regra de inferência tão bizarra? Há alguma justificativa filosófica para a adoção desta nova regra de inferência?
Fica claro então que matemática e filosofia são atividades intelectuais complementares. Uma depende da outra. E se filosofia é o exercício da dúvida, por que matemática seria diferente?
Quando Georg Cantor apresentou sua teoria de conjuntos, no final do século 19, houve considerável resistência de matemáticos de renome da época. Isso aconteceu em virtude de posições filosóficas pessoais sobre o que deve ser matemática. Fenômeno social semelhante aconteceu com a proposta do Axioma da Escolha, na teoria formal de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Alguns matemáticos consideravam que o Axioma da Escolha era obviamente verdadeiro, enquanto outros o consideravam obviamente falso. Por que isso? Porque matemática é uma ciência feita por homens e mulheres, pura e simplesmente. E homens e mulheres estão sim sujeitos a erros em suas visões.
Certamente matemática tem um elevado grau de formalismo e, principalmente, rigor. Mas o que significa a expressão "elevado grau"? Quão rigorosos são os matemáticos? Quão rigorosas são as ideias matemáticas? O que há de tão especial nos dias de hoje, para considerarmos que matemática é uma ciência livre de erros, com grande rigor e precisão, perfeita e irretocável?
Para uma visão detalhada sobre métodos não dedutivos em matemática, recomendo este link.
Se esta visão da falibilidade de ideias fosse estimulada em salas de aula, alunos ficariam menos preocupados com suas próprias limitações pessoais para aprender este ramo do conhecimento e se concentrariam mais na análise crítica da matemática em si. É claro que existem ideias consagradas na matemática! Mas a geometria euclidiana foi um conhecimento consagrado por mais de dois mil anos. E hoje se sabe que geometria euclidiana é apenas uma das facetas de área muito mais ampla e difícil de isolar em um receptáculo mental, chamada simplesmente de geometria.
Este termo "ciência exata" deve ser percebido mais como uma manobra de burocratas para definir critérios de distribuição de verbas científicas do que um termo que descreva em duas palavras a natureza da matemática e de outros ramos do conhecimento também associados a uma noção de exatidão.
Vivemos em um mundo que parece se esforçar a extremos ridículos para abandonar a magia. Existe sim magia nos atos de criação, da justificativa, da análise crítica, da reflexão, da filosofia. Fazer matemática é promover uma visão não sensorial de mundo. É um contato com um lado mágico de mundo.
Aquele (ou aquela) que se condena a uma visão clara de mundo, prática, inquestionável, inexorável, exata, está perdendo contato com o que há de mais fundamental em cada um de nós: somos todos seres humanos. Matemática não é uma atividade extraterrestre, desumana, mecânica, previsível, inquestionável. Matemática somos todos nós. Matemática é magia._________________
Dedico este texto a Helena.
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