Matemática
Os ingênuos têm razão: Estabilidade confere liberdade de expressão
Em um país racionalmente obsoleto como o Brasil, ouço diariamente os discursos mais infelizes, do ponto da vista da mais fértil das imaginações. Quando me manifesto contrário à estabilidade irrestrita concedida a professores de instituições federais de ensino superior, sempre aparece aquele fulano ou aquela beltrana que argumenta: "A estabilidade garante a liberdade de expressão." É simplesmente incrível como o sistema educacional brasileiro e a cultura local conseguem matar todo e qualquer senso crítico da maior parte desta depravada nação.
Essa gente esquece que a expressão praticada pelos estáveis (garantidos pela certeza do emprego, independentemente de suas ações) é, em geral, o comodismo e o abuso. Essa gente não apenas abriu mão de seu direito de pensar, como também se mostra absolutamente insensível à realidade dominante.
O Brasil é um país no qual os grupos considerados de esquerda representam a situação, independentemente de questões partidárias. E essa "esquerda" desmiolada é completamente avessa a qualquer senso de mérito real. É um país que nega a si mesmo a existência de gente excepcionalmente talentosa, dedicada e honesta. É um país que está culturalmente adaptado à depravação.
Lamento, mas se alguém mais argumentar neste blog a favor da estabilidade irrestrita, sem apresentar algum argumento novo, não receberá mais respostas minhas. Já percebi que não tenho o dom da cura contra o mal da ingenuidade. Como ser humano emocionalmente falível, apenas espero que essa gente não se afogue no próprio vômito que exala de seus discursos impensados.
Segue abaixo o depoimento de uma ex-aluna que viu de perto como opera a garantia de emprego concedida a um profissional de universidade federal. O depoimento dela foi enviado por e-mail, como um desabafo pessoal. Pedi permissão para publicar sua mensagem neste blog e ela concordou, desde que certas informações fossem editadas, para garantir sua privacidade. Aceitei os termos impostos e aqui está o depoimento.
Devo avisar que esta moça foi uma das mais brilhantes alunas que já tive. Além de ser uma excepcional estudante de matemática, conta com uma bagagem cultural que raramente vejo mesmo entre professores universitários de vasta experiência. E ela é também mãe de um garoto extraordinariamente educado, algo cada vez mais raro de encontrar neste país.
Até breve_______
Eu estava lendo seu blog e, com tantos assuntos sobre denúncias, lembrei de algo que me aconteceu durante a graduação, que não foi nada agradável.
Na época em que eu praticava esporte em um clube, precisava de ajuda no preparo físico. Uma amiga indicou a academia da UFPR e, como eu estava lá o dia todo, achei interessante. Mas para fazer a matrícula eu precisava de um atestado médico da Casa 3.
Até aí tudo bem. Marquei um horário para fazer a avaliação e fui atendida por um médico que aqui chamo de X. Não me senti muito à vontade. Ele pediu-me que deitasse na maca depois de ter medido minha temperatura e pressão e começou a auscultar a região torácica. O que achei mais estranho foi que ele ergueu minha blusa para fazê-lo. Mas eu realmente não sabia se era procedimento usual e fiquei sem graça de perguntar. Eu lembro que me senti bastante constrangida, pois parecia que ele estava olhando para o meu corpo em vez de realmente se concentrar em fazer as avaliações médicas. A blusa que eu usava não era decotada, pois não me sinto à vontade com roupas assim, mas era possível sim que o exame fosse feito sem a necessidade dele levantá-la. Enfim, ele me entregou um papel que dizia que eu era apta a realizar as atividades físicas da academia.
Fiquei com aquilo na cabeça durante um bom tempo. Mas eu não tinha consciência suficiente para ir atrás e pesquisar as informações necessárias para saber se era procedimento ou não.
Alguns anos depois, precisei renovar o atestado e torci para que fosse outro médico. Mas novamente fui atendida por X. Desta vez, ele não levantou toda a minha blusa, mas ergueu o suficiente para observar o que havia embaixo.
Na época perguntei para alguns colegas que faziam medicina se eles sabiam sobre os procedimentos para tais exames e sobre a necessidade do paciente tirar ou erguer a blusa para que fosse auscultado. Eles me disseram que havia um procedimento sim e que não era necessário mesmo tirar a roupa para isso. Um casaco mais grosso, talvez, mas o contato não precisaria ser direto com a pele.
Eu frequentava bastante a Casa 3 e percebi que este senhor (o médico X) atendia muitas meninas. Não posso afirmar que ele atenda apenas meninas, mas nunca vi nenhum garoto entrar em sua sala. Sem contar que eu tentei, ao marcar esta segunda consulta, pedir por outro médico, mas não consegui e ainda escutei - sem querer - uma piadinha entre as atendentes de que ele só atendia garotas mesmo.
A partir daí comecei a procurar por colegas que já haviam passado por este atendimento e perguntava sobre este médico X especificamente. Todas reclamaram. Todas o acham estranho: o modo como olha, fala, não sei explicar. Uma amiga disse que, além dele, já havia tido uma consulta com um dentista, dentro do Hospital da Federal [UFPR], que marcou a continuação do tratamento em seu consultório particular. Ela também não sabia que isso não era comum e foi. Ao ser atendida, ele tentou beijá-la. Ela saiu correndo do lugar.
Conversei com um professor sobre como proceder, como denunciar. Mas na época eu estava tendo sérios problemas pessoais e acabei deixando de lado tudo isso. A última situação que realmente me desanimou, além de me deixar mais chateada e inconformada com tudo, foi quando tentei conversar na própria Casa 3, com a responsável pelo atendimento e encaminhamento de pacientes a psicólogos e assistência social (eu estava procurando por ajuda nesta época) e comentei sobre este médico X e toda a situação. Ela tentou me convencer, sem vergonha nenhuma, que era assim mesmo, e que dificilmente eu conseguiria alguma coisa, pois ele já era médico "da casa" há muito tempo, concursado, blá-blá-blá. E, se não me falha a memória, que já era sabido que ele era "meio assim". Eu fiquei tão horrorizada, que levantei e fui embora, sem conseguir dizer mais nada.
Fico pensando como é complicado. Na época, lembro que tive muito medo de denunciar e ser prejudicada de alguma maneira em meu curso na UFPR. Tive medo também da exposição da minha imagem. De ser acusada de ter causado a situação. As garotas com as quais conversei se negaram a denunciá-lo junto comigo. É realmente muito difícil lidar com este constrangimento.
Hoje sinto-me muito mal em não ter feito, de fato, algo. Ele provavelmente continua lá e isso gera em mim um sentimento de raiva imenso. Lembro da imagem dele sorrindo, tranquilo, como se nada pudesse atingi-lo. Ele não encostou um dedo no meu corpo, nem mesmo foi covarde como o dentista que "atacou" minha amiga. Mas que direito um médico tem de tratar seu paciente desta maneira, que acredito ser desrespeitosa, causando-lhe constrangimento e, pior, sentimentos de culpa, impotência e impunidade?
Acredito que um médico não tem o direito sequer de olhar de uma maneira desrespeitosa para seu paciente.
Percebi que o procedimento era diferente quando precisei do ginecologista da Casa 3. É completamente diferente. Sempre há uma enfermeira presente. Eu me senti muito mais à vontade em um exame ginecológico do que entrando na sala deste médico X e vendo a porta se fechar.
Nossa! Isto tudo estava perdido em algum lugar da minha memória. E acho que foi meio que um desabafo. Depois de perder as esperanças sobre alguma coisa que pudesse ser feita, acho que resolvi apagar da minha memória e nunca contei sobre o acontecido a mais ninguém. Espero apenas não ter lhe perturbado ou tomado seu tempo.
De qualquer maneira, obrigada pela oportunidade do desabafo.____________
Antes que apareçam os discursos precipitados de que estou usando um caso isolado para defender o fim da estabilidade irrestrita nas instituições federais de ensino superior, devo fazer as seguintes advertências:
1) Este caso aqui narrado não é único e nem o pior.
2) Casos como este ocorrem na iniciativa privada também, onde geralmente não há garantias de estabilidade. No entanto, abusos dessa natureza naturalmente prejudicam a carreira de profissionais que não contam com a tal da estabilidade. Infelizmente, porém, é muito difícil um médico ter sua licença cassada por conta de incidentes como este. Isso porque existe um corporativismo muito forte entre médicos, algo equivalente a um status de estabilidade muito mais difícil de combater.
3) Ainda que, algum dia, a estabilidade irrestrita deixe de existir no funcionalismo público, sempre precisaremos de um sistema judiciário forte e eficiente. Isso porque abusos fazem parte da realidade humana. Nenhum dos alicerces de qualquer sociedade (saúde, educação, justiça e segurança) opera bem sem o apoio dos demais.
4) O fato de que em qualquer sociedade estão sujeitas as ocorrências de abusos não implica que devemos manter condições favoráveis a tais desvios.
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