Prova geométrica do TFC
Matemática

Prova geométrica do TFC


O leitor que já estudou Cálculo Diferencial e Integral provavelmente concorda que, no estudo desta disciplina, as interpretações geométricas de vários conceitos desempenham um papel bastante significativo. É de se notar, entretanto, que na hora de se estudar a prova do Teorema Fundamental do Cálculo (TFC), o apelo geométrico parece se desvanecer e a abordagem que geralmente se vê é essencialmente analítica. Mas será que existe algum tipo de interpretação geométrica para a demonstração do TFC? Tal interpretação não só existe como consiste numa das primeiras provas já publicadas deste importante resultado.

Esta postagem tem, então, o objetivo de expor uma demonstração geométrica para o 1º Teorema Fundamental do Cálculo (aqui, "1º teorema" refere-se à parte de acordo com a qual "a derivada da integral de uma função é a própria função").

Notadamente, apresentaremos o argumento devido ao matemático inglês Isaac Barrow (1630-1677) publicado em 1669 na sua obra Geometrical Lectures (Proposição 11, Lecture X).

Isaac Barrow
Isaac Barrow

Cabe notar que, nos livros de cálculo, geralmente o TFC versa sobre uma função contínua $$f:[a,b]\to\mathbb{R}$$ (na realidade, bastaria $$f$$ ser integrável, conforme se vê nos curso de análise). Porém, na nossa exposição, exigiremos (assim como Barrow o fez) um pouco além da continuidade de $$f$$. Especificamente, suporemos $$f$$ positiva e crescente (o leitor notará que o mesmo argumento vale para uma função negativa, mas não vale para os casos em que $$f$$ se anula nalgum ponto).

Seja, então, $$f:[a,b]\to\mathbb{R}$$ uma função contínua, positiva e crescente. Considere a função $$F:[a,b]\to\mathbb{R}$$ dada por

$$F(x)=\int_a^x f(s) ds.$$

Geometricamente, $$F(x)$$ representa a área da região limitada pelo gráfico de $$f$$ e pelo eixo das abscissas entre os pontos $$a$$ e $$x$$ (veja figura 1). Para fins de ilustração, suporemos $$a>0$$ e $$F(x)>f(x)$$ para todo $$x\in[a,b]$$.

Demonstração Geométrica para o Teorema Fundamental do Cálculo
Figura 1: geometricamente F(x) corresponde à área da região sombreada.

Marquemos o ponto $$t=x-F(x)/f(x)$$ sobre o eixo das abscissas e tracemos a reta $$R$$ que intersecta o eixo das abscissas no ponto $$ t $$ e passa pelo ponto $$(x,F(x))$$ (veja figura 2). Note que $$t<x$$, (mas não, necessariamente, $$t\geq a$$).

Demonstração Geométrica para o Teorema Fundamental do Cálculo
Figura 2: reta $$R$$ passando pelos pontos (t, 0) e (xF(x)), onde = F(x)/f(x).

Agora, considere um ponto $$p\in [a,x)$$ e seja $$k$$ a abscissa do ponto no qual a reta horizontal $$y=F(p)$$ intersecta a reta $$R$$ (veja figura 3).

Demonstração Geométrica para o Teorema Fundamental do Cálculo
Figura 3: a reta = F(p) intersecta a reta R no ponto (kF(p)).

Na nossa figura, obtivemos $$k>p$$. Verifiquemos que, de fato, isto sempre ocorre. Para tanto, vamos nomear os pontos do seguinte modo: $$G=(x,F(x))$$, $$M=(x,F(p))$$, $$K=(k,F(p))$$, $$X=(x,0)$$ e $$T=(t,0)$$ (veja figura 4).

Demonstração Geométrica para o Teorema Fundamental do Cálculo
Figura 4: alguns pontos nomeados.

Note que os triângulos $$GMK$$ e $$GXT$$ são semelhantes. Deste modo, $$GM/MK=GX/XT$$, ou seja,

$$\frac{F(x)-F(p)}{x-k}=\frac{F(x)}{x-t}=\frac{F(x)}{x-\left(x-\frac{F(x)}{f(x)\right)}}=f(x)$$

Portanto,
$$x-k=\frac{F(x)-F(p)}{f(x)}.$$

Por outro lado, pela própria definição da $$F$$, concluímos que $$F(x)-F(p)<f(x)(x-p)$$ (veja a figura 5).

Demonstração Geométrica para o Teorema Fundamental do Cálculo
Figura 5: Note que F(xF(p) é a área sombreada e f(x)(x p) é a área do retângulo destacado. Logo F(xF(p) < f(x)(x p).

Segue-se que 
$$x-k=\frac{F(x)-F(p)}{f(x)} <\frac{f(x)(x-p)}{f(x)}=x-p$$
Assim, $$k>p$$.

Deduzimos, então, que $$(p,F(p))$$ não está sobre a reta $$R$$ (pois o único ponto com ordenada $$F(p)$$ que está sobre $$R$$ tem abscissa igual a $$k$$). Como $$p\in [a,x)$$ foi tomado arbitrário, concluímos que, à esquerda de $$x$$, o gráfico de $$F$$ se encontra localizado acima da reta $$R$$. Um argumento análogo permite mostrar que o mesmo fenômeno ocorre à esquerda do ponto $$x$$. Assim, a reta $$R$$ ?toca? o gráfico de $$F$$, mas não o ?corta?. Ou seja, $$R$$ tangencia $$F$$ no ponto $$(x,F(x))$$. Portanto, $$F'(x)$$ é dada pela inclinação da reta $$R$$, ou seja,

$$\frac{d}{dx}\left[\int_a^xf(s)ds\right]=\frac{d}{dx}F(x)=F'(x)=\frac{GX}{XT}=$$
$$=\frac{F(x)}{x-t}=\frac{F(x)}{x-\left(x-\frac{F(x)}{f(x)}\right)}=f(x).$$

Isto finaliza a demonstração geométrica do primeiro teorema fundamental do cálculo, para o caso particular em que $$f$$ é crescente e positiva.

Desafio para o leitor: o leitor deve ter percebido que o ponto t brotou no meio da argumentação sem qualquer justificativa e desempenhou um papel fundamental. A pergunta que fica é a seguinte: como "adivinhar" que escolher t = x ? F(x)/f(x) funciona? O fato é que há uma motivação geométrica para esta escolha, a qual Barrow não comenta na sua demonstração e que, por hora, deixamos para o leitor investigar.

O 2º TFC (a parte que nos fornece uma fórmula para o cálculo de integrais definidas) também possui uma versão geométrica provada por Isaac Barrow na mesma obra (Proposição 19, Lecture XI). Poderá ser que, futuramente, a exporemos aqui no BLOG MANTHANO.

Referências: Livro The Geometrical Lectures of Isaac Barrow, de J. M. Child e site WolframAlpha.
Erros podem se relatados aqui.

PS.: Feliz natal e próspero ano novo a todos os leitores!




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