A penetração da matemática - Parte I
Matemática

A penetração da matemática - Parte I



Qual é a capacidade de penetração da matemática em diferentes áreas do saber?

A partir de hoje inicio uma série de três postagens, com o propósito de atingir duas metas: 

1) apresentar ao leitor exemplos insólitos da aplicabilidade da matemática e 

2) encerrar esta série de textos com uma discussão de caráter geral sobre o alcance e os limites da aplicabilidade do conhecimento matemático.

Nesta primeira parte discuto brevemente sobre casos pontuais de aplicação da matemática em áreas aparentemente improváveis.

Aqui vai.

E o Vento Levou...

Gone with the Wind... (E o Vento Levou...), de Victor Fleming, é uma das produções cinematográficas mais audaciosas e bem sucedidas da história da sétima arte. E um dos aspectos mais surpreendentes deste magnífico filme é que, após suas quase quatro horas de duração, a trama encerra sem uma conclusão de fato, no sentido usual da teoria das histórias. 

A trama gira em torno da tempestuosa relação entre a temperamental Scarlett O'Hara e o irônico Rhet Butler, em meio à Guerra Civil dos Estados Unidos. 

Pois bem. Em 2013 foi veiculado um artigo no periódico Physica A (publicação da Elsevier dedicada ao estudo de mecânica estatística) no qual um sistema de duas equações diferenciais acopladas descreve as características psico-físicas das personagens Scarlett e Rhet, do filme E o Vento Levou.... 

Os dois amantes da trama desta obra do cinema são indivíduos inseguros, pois reagem de forma muito dramática diante de pequenos envolvimentos do(a) parceiro(a) para, em seguida, atenuarem esta reação quando a pressão exercida pelo(a) parceiro(a) se torna muito grande. O objetivo, neste estudo, é prever o resultado de uma relação amorosa entre duas pessoas com este perfil psicológico descrito pelas equações diferenciais propostas. 

Além dos autores conseguirem prever o final do filme, com o modelo proposto, eles conseguem justificar por que E o Vento Levou... se tornou um dos mais bem sucedidos filmes de todos os tempos. 

Importante observar que o artigo em questão não se trata de um trabalho isolado, mas faz parte de um extenso programa de pesquisa que visa modelar matematicamente vários fenômenos de relacionamentos amorosos entre casais. 

Por exemplo, neste artigo publicado em Archives of Sexual Behavior (Springer), os autores usam uma combinação de método axiomático com equações diferenciais para prever a frequência de relações sexuais em casais estáveis. Entre as variáveis envolvidas, há uma que corresponde a apetite sexual e outra que descreve potencial erótico. 

Como usar antibióticos

Novamente em Physica A foi publicado em 2014 um artigo no qual os autores empregam um sistema de equações diferenciais acopladas (resolvidas por método numérico) que permite estabelecer o protocolo ideal de tratamento de tuberculose a partir do emprego de antibióticos. O objetivo é evitar resistência ao tratamento da doença. O resultado é que os protocolos padrão e intermitente são inadequados, uma vez que o modelo leva em conta diferentes possíveis estados das bactérias responsáveis pela doença, bem como parâmetros que definem o estado de saúde do paciente. O tratamento ideal, de acordo com simulações computacionais, é aquele conhecido como o oscilatório.

A principal dificuldade encontrada pelos autores deste trabalho é o fato de que nem todos os parâmetros necessários para a execução do modelo via solução numérica estão disponíveis na literatura médica. Isso mostra claramente que a interface entre matemática e medicina ainda precisa ser melhor estimulada e explorada.

O protocolo de tratamento ideal tem ainda a vantagem de ser mais barato, do ponto de vista financeiro.

Aproveitando este exemplo, quero lembrar de projeto de pesquisa sugerido neste blog, envolvendo uma interface entre matemática e medicina.

Evolução de opiniões

Processos eleitorais sempre demandam o uso de modelos matemáticos, os quais têm sido exaustivamente discutidos na literatura especializada, em diferentes realidades sociais. No entanto, até muito recentemente não havia um único modelo matemático que descrevesse a dinâmica de opiniões em uma sociedade. Isso mudou com um artigo publicado em 2014 no periódico Physical Review Letters, o qual dispensa apresentações. 

Neste trabalho os autores desenvolveram um modelo computacional que simula a influência de eleitores uns sobre os outros ao longo de intervalos de tempo estabelecidos. O modelo matemático leva em conta não apenas preferências pessoais, como também a troca de informações e a possibilidade de pessoas mudarem de opiniões, seja no ambiente de trabalho ou até mesmo em suas próprias residências. Contextos sociais e até mesmo espaciais também são levados em conta. 

O modelo não permite prever quem vencerá uma eleição. Mas permite prever os fatores sociais que estão por trás de quem está vencendo em uma disputa de opiniões. 

Os pesquisadores envolvidos acreditam que modelos semelhantes podem ser empregados para elucidar a dinâmica de opiniões sobre questões amplamente discutidas por sociedades inteiras, como aquecimento global e terrorismo, entre outros possíveis exemplos. 

Não é necessário dizer que este tipo de pesquisa certamente ajuda a definir estratégias para a divulgação de opiniões. 

O chocolate ideal

Apesar de muitos associarem culinária mais à alquimia do que à química, a verdade é que a arte dos sabores também está ao alcance da matemática. Em artigo publicado em 2009 no periódico European Journal of Lipid Science and Technology (Wiley) os autores usam uma equação de energia para propor um modelo computacional que antecipe a temperatura de chocolate durante um processo específico de têmpera. Desta forma é possível conceber um chocolate que derrete apenas na boca e não em temperatura ambiente. 

Sua capacidade cognitiva

Como você interpreta este texto? Como ele ficará armazenado em sua memória e como esta memória será afetada com o passar do tempo? Como você julga o que lê, ouve e sente? E como você toma suas decisões a partir de suas percepções, memória e julgamentos? Todas essas questões têm sido tratadas em um novo ramo da ciência conhecido como cognição quântica. 

Durante muito tempo pesquisadores têm usado modelos probabilísticos clássicos para compreender múltiplos aspectos da cognição humana. Mas esses modelos atingiram um impasse, limitando sua aplicabilidade ao mundo real. Por conta disso, diversos pesquisadores, incluindo o brasileiro José Acacio de Barros, têm investido no emprego de formalismos matemáticos usualmente associados à mecânica quântica para entender os mecanismos da cognição. De forma alguma essas pesquisas sugerem que o cérebro humano é um sistema quântico. Nem poderia ser o caso, uma vez que o cérebro é um objeto macroscópico, sujeito às leis da física clássica. No entanto, por uma inesperada coincidência, a mesma matemática empregada em mecânica quântica tem sido muito bem sucedida para modelar tomadas de decisão e até mesmo mecanismos de aprendizado.

Considerações finais

A lista acima foi feita apenas para estimular a curiosidade do leitor. E grande parte do que se discute nesta postagem foi inspirado em um único vídeo. Aplicações da matemática em diferentes áreas do saber deixam claro que a principal estratégia para pesquisas genuinamente inovadoras e relevantes reside na colaboração entre profissionais com perfis diversificados. Se as ciências são compartimentalizadas, isso se deve única e exclusivamente ao fato de que critérios burocráticos devem ser atendidos com o objetivo de estabelecer políticas de financiamento. No entanto, ninguém jamais conseguiu estabelecer de maneira clara qual é a fronteira que separa matemática de física, química, medicina ou até mesmo culinária. 

A segunda parte desta postagem deve demorar para ser publicada por aqui. Isso porque não será simplesmente feita uma nova lista de curiosidades de aplicações, mas uma discussão mais ampla sobre o alcance da matemática, quando o assunto é o seu emprego no mundo real.

Já na terceira e última parte será promovida uma discussão daquilo que está fora do alcance da matemática, pelo menos no contexto do que hoje se entende por esta ciência.




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