Matemática
Por que não sou associado da APUFPR?
É ingenuidade achar que a matemática e a educação brasileira possam ser alavancadas significativamente com iniciativas dirigidas apenas aos que fazem matemática e àqueles que a ensinam. Uma mobilização nacional ampla e permanentemente atuante sobre inúmeros segmentos sociais se faz fundamentalmente estratégica. Se o câncer social está instalado, somente uma ação em rede pode curar a educação nacional. Para ilustrar minhas preocupações, discuto inicialmente sobre dois eventos que vivenciei.
Em 2010 lecionei uma disciplina para o curso de Ciência da Computação da UFPR. O índice de reprovação, como usualmente acontece em disciplinas de matemática, foi elevado. Isso se deve à dominante combinação de pelo menos dois fatos: (i) a maioria de nossos alunos de hoje não tem a mais remota ideia do que é estudar e (ii) a maioria dos professores de matemática dos ensinos fudamental e médio tem feito um péssimo trabalho educacional. Quando o semestre letivo terminou, o Coordenador do Curso enviou uma reclamação por escrito ao Chefe do Departamento onde estou lotado. Ele demonstrava estar preocupado com o baixo índice de aprovação na disciplina que lecionei. Essa, por si só, foi uma atitude típica de um administrador que não demonstra saber o que é coordenar um curso de graduação. Ele deveria primeiramente conversar comigo e com todos os alunos. Mas decidiu ignorar as primeiras instâncias apropriadas e encaminhou a tal da reclamação diretamente ao Chefe do Departamento, sem jamais ter conversado pessoalmente comigo antes ou depois. Provavelmente foi medo, o que é compreensível. O assunto, claro, morreu muito rapidamente, como também é de se esperar em uma universidade como a UFPR.
A seguir o segundo evento, antes que eu apresente minhas conclusões.
No primeiro semestre de 2011 lecionei Cálculo Diferencial e Integral para uma turma do Curso de Ciências Biológicas. Aquilo sim foi uma experiência notável. A maioria dos alunos da turma era tão agitada quanto crianças de um jardim de infância que são obrigadas a permanecer sentadas contra a vontade. Estava patente que aquele comportamento infantil não tinha raízes em quaisquer más intenções dos alunos. Não encontrei evidências de que eles quisessem intencionalmente sabotar as aulas. Era simplesmente o jeito deles. Um jeito inocente, apesar de intelectualmente destruidor. Eram adolescentes que evidentemente vieram de famílias desestruturadas, ignorando a existência de procedimentos sensatos para uma convivência civilizada. Tentei inúmeros mecanismos para conquistar a atenção deles durante as aulas. Mas as conversas paralelas em uma turma com cerca de oitenta alunos pareciam ser inevitáveis para aqueles jovens desvairados. E tais conversas paralelas durante uma aula interferem de maneira muito negativa sobre os poucos que estavam genuinamente interessados em aprender Cálculo. Foi então que eu tive uma ideia absolutamente nova (pelo menos para mim). Era uma ideia arriscada (no escopo de meus valores pessoais), mas resolvi tentar.
Propus aos alunos o seguinte: "Já que vocês não conseguem ser civilizados, vou comprar essa civilidade. Todos os alunos que fizerem as três provas previstas, mesmo que as entreguem em branco, estão garantidamente aprovados com média final mínima de 50. A única condição que exijo em troca é que não ocorram mais conversas paralelas durante a aula e nem outras formas de tumulto. Não há também obrigação alguma para assistir às aulas, pois jamais faço chamada."
Inicialmente os alunos não acreditaram que um professor da UFPR pudesse fazer uma proposta dessas e muito menos executá-la. Alguns deles ficaram com receio de que eu teria problemas com a Coordenação do Curso, diante de postura tão radical. Mas rapidamente convenci a todos de que eu falava seriamente. Meu principal argumento foi o fato de que a Coordenação do Curso de Ciências Biológicas não parece levar a sério o emprego de Cálculo Diferencial e Integral em Biologia. Afinal, aquele curso estuda apenas um semestre dessa disciplina, com uma incipiente carga semanal de quatro horas, e sem qualquer diálogo institucionalizado com professores de biologia. Mas a verdade é que eu sei exatamente o que pode provocar problemas reais para um docente da UFPR: praticamente nada.
Finalmente conquistando a confiança dos alunos, apliquei um processo de seleção natural sobre os futuros biólogos. Apenas uma minoria comparecia às aulas regulares, após o pacto. E estes assíduos estudantes tinham um comportamento quase exemplar. Tive poucos problemas com eles.
Nos dias de prova praticamente todos os matriculados compareciam. A maioria apenas assinava a folha de questões e a lista de presença, retirando-se em seguida. Mas aquela minoria que comparecia regularmente às aulas tentava efetivamente responder às questões em cada uma das três avaliações que apliquei.
O resultado foi a aprovação em massa na turma. Foram reprovados apenas aqueles que não compareceram às provas, incluindo as de segunda-chamada que eu disponibilizei para todos os que deixaram de fazer alguma das avaliações. Mesmo assim o índice de aprovação foi acima de 90%.
Curiosamente não ouvi uma única palavra da Coordenação de Ciências Biológicas. Esperei durante meses por qualquer pronunciamento. Por isso não postei essas informações há mais tempo. Ofereci uma chance para que a universidade demonstrasse algum compromisso sério com ensino. E nada aconteceu. Ora, se a Coordenação de Ciência da Computação percebeu alguma irregularidade em um elevado índice de reprovação, por que a Coordenação de Ciências Biológicas não consegue perceber irregularidade alguma em um índice de aprovação que está em completo desacordo com a realidade do ensino de matemática? Não considero honestamente possível um índice de aprovação de 90% em Cálculo Diferencial e Integral para calouros da UFPR nos cursos de Ciências Biológicas, Ciência da Computação, Estatística, Física e Matemática (os cursos que conheci de perto).
Levando em conta estes e inúmeros outros exemplos que presenciei durante mais de vinte anos como docente da UFPR, o que percebo acontecer é o seguinte:
1) Coordenações de cursos de graduação não querem represar alunos reprovados, pois isso demanda o pedido de novas turmas em departamentos que contam com poucos professores.
2) O pornográfico REUNI do Governo Federal ofereceu dinheiro fácil para universidades públicas, desde que elas assumissem o compromisso de elevar seus índices de conclusão de curso para 90%.
3) Os alunos (que universidades como a UFPR têm absorvido em seus quadros) percebem a farsa acadêmica vivida nos dias de hoje. Soma-se a isso o fato de que muitos deles (talvez a maioria) é inadequada para um ambiente universitário sério, e temos então a combinação perfeita para a futura falência total do ensino superior brasileiro.
Não é por acaso que inúmeros países desenvolvidos não reconhecem nossos diplomas de graduação. Isso porque praticamente não há cursos de graduação no Brasil.
O que realmente desejo salientar é que não há conspiração alguma contra a educação em nosso país, pois conspirações são organizadas. Não vivemos mais uma ditadura militar da qual uns poucos se rebelaram décadas atrás. Mas vivemos uma ditadura do comodismo e da absoluta falta de empatia para com a realidade do mundo. O que se desenvolve no seio da vida acadêmica de nosso Brasil é o resultado de ingenuidade perene, pura inocência, tanto de alunos quanto de professores e dirigentes. Nossa vida acadêmica parece dirigida por crianças de um jardim de infância. Não existe massa crítica articulada na vida universitária do país que perceba a farsa que hoje vivemos e que efetivamente faça algo a respeito. Sobre isso remeto à postagem Newton é brasileiro. E daí?
Para concluir minhas evidências anedóticas, encerro com um exemplo mais marcante, vindo de uma bizarra coletividade de professores da UFPR.
Verba volant, scripta manent, vamos a uma evidência impressa.
A edição de novembro de 2011 do Jornal Mural da APUFPR-SSIND (Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná/Seção Sindical do Andes-Sindicato Nacional) ilustra claramente a farsa acadêmica hoje vivida.
Em uma folha grande, impressa em apenas um lado (afinal é um cartaz, pois podemos continuar desperdiçando papel!), esse jornal defende na forma de quadrinhos (sim, quadrinhos! QUADRINHOS!) a importância sobre o limite de 12 horas/aulas por semana para professores com contrato de 40 horas e de Dedicação Exclusiva. O fato de redator e revisor do jornal não saberem conjugar o verbo "orientar" não incomoda tanto. O fato de redator e revisor não saberem que 2:30 PM é um horário do período da tarde e não da madrugada (como dramaticamente sugerem!) também não incomoda tanto. Mas a planilha de Plano Individual de Trabalho para docentes que essa publicação exibe para fins ilustrativos é algo que realmente desanima. Consta lá o seguinte (se o leitor não entender o segundo item, não se assuste; eu também não entendi):
- Aulas - graduação e pós 20 horas
- Preparação/correção de aulas/provas/trabalhos 20 horas
...
- Pesquisa 4 horas
...
Foi o item Pesquisa que me despertou atenção. Como levar a sério um professor universitário que afirma dedicar quatro horas semanais para pesquisa? Que espécie de pesquisa é essa? Se o professor não faz pesquisa alguma, que escreva "eu não faço pesquisa, pô!". Mas se este docente tem a intenção de que alguém civilizado e sensato acredite que ele faça pesquisa, quatro horas semanais é uma piada de muito mal gosto. Não se escreve esse tipo de coisa, professores! Isso demonstra para toda a comunidade acadêmica que nem mesmo a APUFPR (representante da UFPR nos ridículos movimentos de greve!) tem a mais remota ideia do que é uma universidade, pois a APUFPR simplesmente não sabe o que é pesquisa. E se não sabem o que é pesquisa, 12 horas/aula por semana é pouco. Órgãos como a APUFPR parecem implorar ao Brasil para não serem levados a sério por quem efetivamente deveria.
Ou seja, finalmente respondo à questão do título da postagem: porque eu teria vergonha de dizer que a APUFPR me representa, assim como começo a sentir vergonha de dizer que sou professor da UFPR.
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Nota de 26/12/2014: Para conhecer uma das consequências desta postagem, clique aqui. Para uma discussão mais detalhada sobre a APUFPR clique aqui.
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