Matemática
Provando a Segunda Lei de Newton
É claro que qualquer formulação axiomática para a mecânica newtoniana deve, em princípio, permitir a dedução das leis de Newton. E, para tanto, basta que tais leis sejam colocadas na forma de axiomas. Uma vez que todo axioma é teorema em qualquer teoria axiomática, a prova das leis de Newton se torna obviamente trivial. No entanto, o título desta postagem se refere a uma demonstração não trivial da segunda lei de Newton.
Existe um arranjo experimental muito famoso no estudo de mecânica clássica conhecido como a experiência do balde. Imagine um balde parcialmente cheio de água e pendurado por uma corda torcida. Ao soltar o balde, a corda tende a voltar para a sua configuração natural, antes de ser torcida, fazendo com que o balde com água gire. Durante o giro do balde, aos poucos a água tende a acompanhar este movimento, rotacionando também. E quando a água finalmente acompanha o movimento do balde, sua superfície (antes plana) fica curvada. É uma brincadeira muito fácil de fazer em casa.
Ora, se a superfície da água fica curva, em movimento que acompanha a rotação do balde, podemos concluir que esta água está acelerada. A pergunta, portanto, é a seguinte: qual é o agente material que está provocando esta aceleração? Responder a esta pergunta equivale a questionar a origem da inércia. Se nos obrigarmos a considerar que qualquer sistema de referência deve ser material, existem pelo menos três possíveis respostas à pergunta: o balde, o planeta Terra e as estrelas distantes.
Se a água está acompanhando o movimento do balde, certamente não está acelerada relativamente ao balde. Pelo contrário, ela está parada relativamente a este sistema. Portanto, o balde em si não justifica a curvatura da superfície da água.
Como o balde está pendurado por uma corda torcida, fixa em relação à Terra, podemos pensar em nosso planeta como referencial. No entanto, a única força que a Terra exerce sobre a água é a gravitacional, a qual aponta para baixo. No entanto, a curvatura da superfície da água indica uma aceleração com componentes horizontais não nulas, além das verticais. Logo, o planeta Terra não pode ser o agente responsável pela aceleração da água.
E as estrelas distantes? Se considerarmos que a distribuição de massa das estrelas distantes é isotrópica (a mesma distribuição em todas as direções), podemos modelar esses corpos como uma esfera oca, de tal modo que o balde se encontre no interior de tal esfera. No entanto, ao integrarmos a força da gravitação universal de Newton no interior de uma esfera oca com distribuição isotrópica de massa, o resultado é obrigatoriamente uma força total nula em qualquer ponto do interior da esfera. Este é um teorema bem conhecido em mecânica clássica. Como força nula, em mecânica, implica em aceleração nula, novamente não conseguimos justificar a aceleração da água do balde. E assumir que as estrelas distantes formam uma distribuição de massa não isotrópica vai em escandaloso desencontro com evidências experimentais.
Portanto, estamos em uma situação realmente complicada. Afinal, como explicar a inércia de corpos materiais? Quando Isaac Newton desenvolveu suas ideias a respeito de mecânica e gravitação, ele percebeu essa constrangedora dificuldade. Sua solução para o problema do balde foi muito bizarra. Newton considerou que a água do balde está acelerada em relação àquilo que ele chamou de espaço absoluto.
Para muitos críticos da teoria de Newton (especialmente Ernst Mach), essa explicação carece de sentido físico. Afinal, como afirmar que a água do balde está acelerada em relação ao espaço absoluto? Espaço não tem massa! Matéria deve interagir com matéria e não com o espaço!
Em função disso, muitos físicos e filósofos da ciência assumem, de maneira usualmente informal, a existência de um princípio de Mach, segundo o qual "a inércia de um corpo material é devida à sua interação com outros corpos materiais". No entanto, vale observar que o próprio Mach jamais enunciou explicitamente alguma lei física sobre inércia que justifique a expressão "Princípio de Mach", apesar da literatura fazer recorrentes referências a esta alegada lei física.
O brasileiro André Koch Torres Assis propôs, em 1989, uma solução interessante para o problema do balde, a qual foi batizada de mecânica relacional. Inspirado nas antigas ideias de Wilhelm E. Weber sobre eletrodinâmica, ele introduziu uma teoria de gravitação na qual a força gravitacional entre duas partículas materiais depende não apenas da distância entre elas, mas também da velocidade relativa entre ambas e da aceleração de uma em relação à outra. Além disso, ele assumiu que a soma de todas as forças sobre uma partícula material é sempre nula, em qualquer sistema de referência.
A partir desses pressupostos, Assis provou que mesmo uma distribuição isotrópica de massa das estrelas distantes consegue explicar a aceleração da água no balde. Deste modo, ele criou uma teoria de gravitação que justifica a inércia dos corpos com massa. Além desta conquista, a mecânica relacional consegue modelar com sucesso até mesmo a precessão do periélio dos planetas, fenômeno este normalmente explicado via Teoria da Relatividade Geral de Einstein.
Já discutimos em postagem anterior que a mecânica relacional de Assis tem sérias limitações, se comparada com a Relatividade Geral. Não queremos nos estender sobre este ponto. Mas em artigo publicado em parceria com Peter Graneau em 1996, Assis defendeu uma tese muito ousada e, convenhamos, irresponsável pela falta de qualificação. Ele afirmou que o princípio de Mach (na forma como apresentado acima) não pode ser implementado se usarmos a força newtoniana de gravitação universal. Esta afirmação é um suposto argumento em favor da mecânica relacional. É justamente neste ponto que entra um trabalho que publiquei em 2001 em parceria com Clóvis Achy Soares Maia (na época aluno de Iniciação Científica e hoje professor da Universidade de Brasília).
Maia e eu desenvolvemos um sistema axiomático para uma teoria que chamamos de mecânica machiana (em homenagem a Mach). Inspiramo-nos em uma formulação axiomática para a mecânica newtoniana devida a J. C. C. McKinsey, A. C. Sugar e P. Suppes, publicada originalmente em 1953.
Na axiomatização de McKinsey, Sugar e Suppes há dois tipos de forças: de interação e externa. As forças de interação deveriam dar conta de fenômenos como forças de contato, a gravitação universal de Newton e a força de Coulomb entre cargas elétricas. E a força externa se refere às inevitáveis forças perturbativas que existem em qualquer sistema físico tratado de forma realista.
Matematicamente falando, essas duas forças são muito diferentes uma da outra. As forças de interação são descritas por funções que têm como domínio o produto cartesiano entre P, P e T, sendo P o conjunto de partículas do sistema estudado e T um intervalo de números reais fisicamente interpretado como tempo. Isso significa que a cada partícula p de P e a cada partícula q de P, em cada instante t de T, associamos uma força descrita por um vetor em um espaço vetorial real tridimensional. Já a força externa é tratada como uma função cujo domínio é o produto cartesiano entre P e T. Para cada partícula p de P em cada instante t de T existe uma força externa associada, dada novamente por um vetor em um espaço vetorial real tridimensional.
Considere, por exemplo, um estudo sobre a dinâmica do sistema Terra-Lua. É bem sabido que nossos planeta e satélite natural têm interação gravitacional não apenas entre si, mas também com uma gigantesca miríade de corpos espalhados pelo universo. Tratar de todas as interações gravitacionais da Terra e da Lua com todos esses astros é matematicamente impossível, pois teríamos que lidar com uma quantia assombrosa de equações. A solução é tratar as forças entre Terra e Lua como interativas e as demais forças atuantes como uma ação perturbativa (a força externa). O objetivo deste recurso é tornar o problema matematicamente tratável.
Na mecânica machiana que Maia e eu criamos, a força externa assume um papel não apenas matemático, mas físico também. Ela é justamente a força responsável pela inércia dos corpos materiais (e, portanto, de natureza distinta das forças interativas gravitacionais). Por isso mesmo assumimos como postulado que a força externa sobre qualquer partícula material é o simétrico aditivo do produto entre sua massa e a aceleração da mesma, relativamente a um sistema inercial. Desta forma fizemos uma distinção matematicamente clara entre forças locais (interativas) e forças globais (a força externa). Estas últimas correspondem a uma tradução matemática do princípio de Mach acima mencionado.
Conjugando o postulado sobre forças perturbativas (externas) com o axioma que estabelece que a soma de todas as forças atuantes sobre qualquer partícula material é sempre nula, conseguimos facilmente deduzir a célebre segunda lei de Newton, segundo a qual (grosseiramente falando) a soma das forças interativas sobre uma partícula p de P é o produto entre a massa de p e sua aceleração.
Em seguida, Maia e eu mostramos que tanto a gravitação newtoniana quanto a gravitação weberiana da mecânica relacional podem servir como modelos de nossa mecânica machiana. Fizemos, portanto, não apenas uma generalização das ideias de Assis, mas também a prova de que é perfeitamente possível compatibilizar gravitação newtoniana com o princípio de Mach. Este último resultado contradiz uma tese central de Assis e Graneau sobre as vantagens da mecânica relacional em relação à gravitação newtoniana.
Enfim, a aceleração da água no balde não precisa apelar para interações entre massa e espaço, se adotarmos uma distinção entre forças locais e forças de ação global. Este foi um exemplo interessante de como o método axiomático pode ajudar na compreensão teórica e até mesmo experimental de teorias físicas.
Ciência se faz com discurso qualificado. E desconheço técnica mais eficaz para qualificação de discurso do que o método axiomático.
Para o leitor interessado nos detalhes, a referência principal desta postagem é o artigo "Axioms for Mach's Mechanics", de A. S. Sant'Anna e C. A. S. Maia, em Foundations of Physics Letters, volume 14, páginas 247-262 (2001). Este trabalho teve uma ótima resenha em Mathematical Reviews e contou com críticas e sugestões de Newton da Costa, Giancarlo Cavalleri, E. Toni e, claro, André Assis. Este último, porém, não endossa nossa proposta.
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