Matemática
Matemáticos no Cinema
Eric Temple Bell, em seu famoso livro Men of Mathematics, explora a vida e a obra de quarenta e um matemáticos, de Zenão a Cantor, ao longo de dois mil anos de história. Entre eles há os religiosos e os ateus, os místicos e os agnósticos, os politicamente conscientes e os alienados, celibatos, pervertidos e casados, doentes e saudáveis, felizes e miseráveis, sociáveis e isolados, ricos e pobres. Acrescento ainda que há também asiáticos e europeus, heterossexuais e homossexuais, conservadores e liberais, homens e mulheres, jovens e idosos.
Ou seja, não parece existir um perfil pessoal, racial, religioso, sexual, político, filosófico, social ou econômico que defina matemáticos. Matemáticos, por mais surpreendente que possa parecer para alguns, são seres humanos. E a diversidade humana é muito grande. O que define matemáticos é sua forma de pensar a matemática e/ou aplicações desta ciência formal. Eventualmente o pensar matemático pode se transportar para outras atividades do cotidiano que podem causar estranheza aos olhos de leigos. Mas isso não os torna aberrações da natureza. Assim como advogados têm uma maneira própria de ver o mundo, o mesmo ocorre com médicos, artistas e matemáticos, entre outras profissões.
No entanto, ainda persiste uma imagem caricata sobre matemáticos em certos segmentos sociais. Discuto brevemente aqui um desses segmentos: o cinema.
Não sou cinéfilo, mas sempre senti forte atração por cinema. Daí o tema desta postagem. Não sigo adiante qualquer critério específico para a escolha da ordem dos exemplos da sétima arte. Apenas discuto sobre alguns filmes que conheço.
Em Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo), do sanguinário diretor Sam Peckinpah, Dustin Hoffman faz o papel principal, o de um matemático. Este profissional acadêmico é retratado como um indivíduo ingênuo, desprovido de empatia, alienado, indigno de respeito, egocêntrico, covarde, incapaz de lidar com situações do cotidiano e desatento o bastante com a esposa a ponto de criar condições para que ela seja humilhada e estuprada por dois homens que trabalhavam para ele. Mesmo quando o matemático resolve reagir diante das constantes pressões que sofre, nada faz além de besteiras. A cena de estupro é tão revoltante e agressiva que motivou a censura inglesa a proibir a exibição do filme naquele país.
Admiro muito a filmografia de Peckinpah e entendo que há plena liberdade para a definição de personagens em filmes. Também compreendo que Peckinpah, enquanto diretor, não tinha obrigação alguma de transformar seus filmes em documentários dramatizados com fins educacionais. No entanto, a imagem da personagem de Hoffman certamente contribui para uma visão caricata sobre matemáticos. Principalmente se levarmos em conta a forte influência dos filmes deste diretor ao longo de gerações.
Já no filme A Beautiful Mind (Mente Brilhante), do pouco inspirado ator e diretor Ron Howard, o talentoso ator Russell Crowe faz o papel do matemático John Forbes Nash, Jr., ganhador na vida real do Nobel em Economia. Aqui Nash é retratado como um gênio com dificuldades de entrosamento social e que sofre os horrores de uma grave e incurável doença mental conhecida como esquizofrenia paranóica. Ou seja, nesta película a visão estereotipada do matemático extrapola a de Peckinpah, atingindo um quadro claramente clínico.
Outro exemplo interessante é o filme 21 (Quebrando a Banca), de Robert Luketic, no qual o brilhante ator Kevin Spacey interpreta um matemático do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) (novamente um filme baseado em caso real) que usa a ciência tão bem dominada por ele com o propósito de ganhar dinheiro em jogos de azar na decadente cidade de Las Vegas. Do ponto de vista do tema desta postagem, o primeiro pecado do filme é o retrato de que matemáticos são criaturas habilidosas com números. Levando em conta que habilidades com números não qualificam pessoa alguma a se tornar um matemático, essa abordagem também contribui para uma visão distorcida sobre tais profissionais da ciência. Além disso, o filme de Luketic passa a mensagem de que gênios da matemática são cegamente confiantes em si e que formam uma espécie de clube exclusivo, do qual pessoas menos inteligentes não podem participar. Isso, em parte, justificaria algo como uma reação dos gênios contra uma sociedade que os percebe com estranheza e até desprezo.
No filme Cube (O Cubo), de Vincenzo Natali, a personagem da incompetente atriz Nicole de Boer, é uma estudante de matemática. Novamente se trata de alguém com suposta habilidade para lidar com números. A premissa da produção se sustenta em um pequeno grupo de pessoas que estão presas dentro de um cubo, o qual dá acesso a outros cubos, através de portas em suas faces. Do ponto de vista cinematográfico, o filme é uma fabulosa façanha que ganhou vários prêmios internacionais e duas continuações (infelizmente inferiores), pois consegue sustentar uma história de grande dramaticidade em um cenário minimalista a extremos, ficando atrás apenas do excelente Buried (Enterrado Vivo) de Rodrigo Cortés. No entanto, a tal estudante de matemática exibe claramente na atuação que sua habilidade com números é extremamente limitada. Entre as vítimas do aprisionamento injustificado da história, a personagem que demonstra excepcional habilidade com operações entre números é um rapaz com séria deficiência mental. Ou seja, doentes mentais podem ser melhores matemáticos do que os saudáveis.
Na lamentável obra The Happening (Fim dos Tempos) do decadente diretor indiano M. Night Shyamalan, o matemático (na verdade, um professor de matemática) da trama é surpreendentemente interpretado por John Leguizamo, ator conhecido no cinema por papéis cômicos. Para conferir seriedade à personagem ele usa óculos. E mais uma vez encontramos um profissional da matemática obcecado por números. Na opinião dele, estatísticas e percentuais têm o efeito de tranquilizar pessoas que se encontram diante de crises. Ou seja, mais um indivíduo socialmente alienado.
No filme Pi (Pi) do bizarro diretor Darren Aronofsky, a personagem principal é um matemático paranóico obcecado por números e suas relações com a cabala. Na abertura da produção o número pi (a razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro) aparece com o valor errado em sua representação decimal. O que exatamente isso nos diz sobre o diretor?
A única exceção que conheço, em termos da regra de visões distorcidas de matemáticos no cinema, está no filme Jurassic Park (Parque dos Dinossauros), do excepcional diretor Steven Spielberg. Neste filme, o matemático, interpretado pelo excelente Jeff Goldblum, consegue descrever com precisão e de forma perfeitamente acessível para leigos, o conceito de sistemas dinâmicos (teoria do caos). Ou seja, não se fala em números. Além disso, ele tem mentalidade interdisciplinar e pragmática, pois aplica na prática a teoria ao mundo real (no caso, ecossistemas). Também é uma personagem que encontra as mesmas dificuldades de relacionamentos sociais de qualquer ser humano saudável. Por sorte, entre todos os filmes citados, este foi o que teve maior bilheteria e impacto. Mas ainda é uma gota no oceano da cultura popular. Afinal, em um hilário episódio da série de televisão de enorme sucesso The Simpsons (Os Simpsons), um apresentador de programa de TV anuncia a profissão de dois astronautas, dizendo que um deles é um matemático, enquanto o outro é outro tipo de matemático. É claro que isso é cômico e até hoje me delicio com esta cena. Mas convenhamos que os Simpsons são muito mais uma sátira à sociedade do que um retrato fiel dela.
Espero que o leitor entenda que não estou me manifestando contra a postura de diretores de cinema que gostam de retratar matemáticos como pessoas esquisitas. Diretores fazem caricaturas até mesmo com personagens que são também diretores, como nos brilhantes filmes S.O.B. (S.O.B), de Blake Edwards, e Hollywood Ending (Dirigindo no Escuro), de Woody Allen. Escrevo esta postagem apenas como uma informação que pode ser útil para compreender a mentalidade popular sobre pessoas que estudam matemática ou trabalham com ela. E a compreensão dessa mentalidade é instrumento fundamental para desfazer quaisquer incompreensões.
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