Uma Aplicação do Princípio da Boa Ordenação (ou "O Algoritmo da Divisão Parte I")
Matemática

Uma Aplicação do Princípio da Boa Ordenação (ou "O Algoritmo da Divisão Parte I")





Hoje dou início a uma série de postagens cujo objetivo é apresentar a demonstração do algoritmo da divisão, explicando-a em detalhes. A parte de hoje é particularmente interessante devido ao fato de fazer uso do "Princípio da Boa Ordenação".

De modo geral, dividir a por b significa encontrar um número c tal que bc. Quando se restringe esta operação ao conjunto ? dos números inteiros nem sempre é possível encontrar c que satisfaça a última igualdade. Neste caso diz-se que a divisão "deixa resto". Quando é possível encontrar o c diz-se que a divisão é exata. No caso em que o resto é igual a zero diz-se que b divide a. No caso em que o resto é maior do que zero diz-se que b não divide a.

Exemplo: a divisão de 10 por 2 é exata (10 = 2×5), em outras palavras: 2 divide 10 (isto significa que o resto é zero). A divisão de 11 por 2 não é exata (11 = 2×5 + 1), em outras palavras: não divide 10 (isto significa que o resto não é zero ? neste caso o resto é 1).

A proposição abaixo (conhecida como ?algoritmo da divisão?) cuida de assegurar a existência e unicidade do resto r (eventualmente nulo) e do quociente q em qualquer divisão entre dois inteiros a e b, com ? 0 (ou seja, ela diz que sempre que você for efetuar uma divisão você encontrará um cociente e um resto (menor do que o cociente) e, além disso, que sempre que você dividir o mesmo número pelo mesmo divisor você sempre encontrará o mesmo cociente e o mesmo resto).


Proposição (algoritmo da divisão): Se a é um número inteiro qualquer e b é um número inteiro maior do que zero, então existem dois números inteiros q e r tais que a = bq + r, onde 0 ? b. Além disso, q e r são únicos.


Nesta primeira postagem da série, vamos mostrar que dados a,b ? ?, ? 0, de fato existem q e inteiros tais que a = bq + r.
Para demonstrar a existência destes números iremos mostrar que existe  um conjunto que os contém (isto faremos definindo o tal conjunto). Como já adiantamos, vamos utilizar um fato (extremamente intuitivo) conhecido como o Princípio da Boa Ordem (ou da Boa Ordenação), que diz o seguinte: 


?todo subconjunto não vazio do conjunto dos números naturais possui um menor elemento?


Ora, não me parece nenhum pouco difícil crer que isso é verdadeiro!


Vamos então para a prova:


Seja a um número inteiro qualquer e seja b um número inteiro maior do que zero. Considere o conjunto:

S = {y, tal que ? bx, onde x ? e 0}


Note, inicialmente, que S está contido no conjunto ? dos números naturais (para S não ser subconjunto de ? precisaria conter algum número negativo - o que não ocorre, pois ele só contém números inteiros positivos).


Note agora que S não é um conjunto vazio (para mostrar que um conjunto não é vazio tudo o que se tem a fazer é exibir um elemento que pertença a ele. Neste caso, para exibir um elemento de S, basta colocar = 2= 1 e = 1. Podemos fazer isso, pois as únicas exigências são que a seja inteiro (e 2 é inteiro), que b seja inteiro maior do que zero (e 1 é inteiro maior do que zero) e que x seja inteiro (e 1 é inteiro). Resta saber se estas escolhas produzem, de fato, um número positivo: neste caso vamos obter y = 2 ? 1×1 = 1 que é positivo e que, portanto, pertence a S).


Como S é um subconjunto não vazio de ? pode-se afirmar, em virtude do Princípio da Boa Ordenação, quepossui um menor elemento. Vamos chamar este elemento de r (dizer que r é o menor elemento de S significa que se k pertence a S então, necessariamente, k ? r).


Como r pertence a S ele se enquadra na definição dos elementos de S, em outras palavras, ele é do formato "? bx" (onde ?). Ainda de outro modo: existe um inteiro x tal que bx. Se chamarmos este x de q obtemos a bq ou, equivalentemente, a = bq + r.


Fica, assim, provado que os dois inteiros q e r mencionados no enunciado da proposição 2 de fato existem!!!


Na próxima postagem da série mostramos que 0 ? b.


Observações____________________________________________________


>>>Dissemos que S está contido em ? devido ao fato de não conter negativos, pois assumimos implicitamente que ? = {0, 1, 2, ?}. Se adotássemos, como se faz algumas vezes, que ? ? então o argumento não mudaria em nada, pois continuaria sendo subconjunto de ?. Entretanto teríamos que ter escrito que "para S não ser subconjunto de ? precisaria conter algum número negativo ou o zero".


>>>Muito embora o Princípio da Boa Ordenação seja "óbvio" (sendo abordado como axioma em algumas abordagens, tais como nesta que foi apresentada) é possível demonstrá-lo a partir dos chamados "Axiomas de Peano" (o que sem dúvidas faremos em outra ocasião). Estes axiomas são importantes devido ao fato de que todas as propriedades dos elementos do conjunto dos naturais são deduzidas a partir deles (inclusive a propriedade de todo subconjunto não vazio de ? possuir menor elemento).


>>>Essa demonstração pode parecer esquisita, pois se baseia em definir um conjunto de maneira muito conveniente - o que pode ser uma tarefa meio difícil de motivar (mesmo tendo a dica de que se usa o Princípio da Boa Ordem necessitaríamos, talvez, de bastante criatividade para "descobrir" a demonstração). Essa é uma das belezas do trabalho dos matemáticos: eles descobrem (ou inventam?) coisas que, por vezes, não são óbvias (incluindo maneiras não óbvias de demonstrar coisas óbvias). Mas uma vez que aprendemos o raciocínio empregado podemos participar do prazer da compreensão.


>>>A propósito, sobre definir conjuntos há muita coisa interessante que pode ser dita, as quais esperamos ter ocasião futura de discutir (ao leitor interessando neste tema, sugerimos que pesquise sobre o Paradoxo de Russel)

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Referências: na última postagem da série.
Relate erros aqui.



Veja + sobre divisão:
Por que não existe divisão por zero?
Por que todo número racional, quando não é um decimal finito, é uma dízima periódica?




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