Um novo olhar sobre os números pitagóricos
Matemática

Um novo olhar sobre os números pitagóricos



O objetivo desta postagem é publicar um trabalho de autoria do Professor Fernando Cézar Gonçalves Manso (UTFPR-CM) e co-autoria minha (Pedro R.), no qual são apresentados alguns interessantes resultados (com elementares demonstrações) sobre ternos pitagóricos. Tais resultados incluem tanto um algoritmo para gerar todos eles a partir de um cateto dado (vide teorema 1) quanto algumas condições para obter ternos primitivos (vide teorema 2). O BLOG MANTHANO agradece imensamente a contribuição do professor Fernando Manso que, a partir de suas finas observações, tornou possível a elaboração deste conteúdo.


INTRODUÇÃO

Os ternos pitagóricos são conhecidos desde a antiguidade, mesmo antes de Pitágoras. Há fortes evidências de que, cerca de mil anos antes, os Babilônios já conheciam um número considerável dessas tríades. O terno $$(a,b,c)$$ chama-se terno pitagórico se, e somente se, $$a$$, $$b$$ e $$c$$ forem inteiros positivos tais que $$a^2+b^2=c^2$$; $$a$$ e $$b$$ são os catetos e $$c$$ é a hipotenusa. Um terno pitagórico pode ser primitivo ou secundário; é primitivo quando o MDC (máximo divisor comum) de $$a$$, $$b$$ e $$c$$ for igual a $$1$$, (ou seja, quando $$a$$, $$b$$ e $$c$$ forem primos entre si) e é secundário em caso contrário. Um terno ainda pode ser simétrico, quando os seus elementos constituem uma Progressão Aritmética e não simétrico, quando isso não ocorre.

Geralmente os ternos pitagóricos são construídos a partir de dois parâmetros e nenhum deles é um dos números que formam a tríade, por exemplo quando se usa a equação geradora $$(x^2-y^2 )^2+(2xy)^2=(x^2+y^2 )^2$$ que depende dos naturais $$x$$ e $$y$$ tais que $$x > y$$. A proposta aqui é, então, a construção de ternos pitagóricos utilizando um dos catetos como parâmetro.

Em artigo apresentado na RPM 07, Andréa Rothbart e Bruce Pausell mostram uma maneira de gerar todos os ternos pitagóricos colocando 

$$(a,b,c)=\left (\sqrt {uv}, \frac{u-v}{2}, \frac{u+v}{2}\right),$$

onde $$u$$ e $$v$$ têm a mesma paridade, $$u > v$$ e o produto $$uv$$ é um quadrado perfeito. Assim, dado um cateto específico, a fórmula de Rothbart e Pausell é capaz de gerar ternos pitagóricos nos quais o dado cateto figura. Esse trabalho guarda, portanto, certa semelhança com o trabalho de Rothbart e Pausell no que diz respeito ao seu propósito mas difere deste em sua forma. Outro diferencial é que detalharemos algumas características dos parâmetros envolvidos que possibilitem uma identificação prévia do tipo (primitivo ou secundário) do terno pitagórico gerado.

CONSTRUINDO OS TERNOS

Sabe-se, desde a antiguidade, que se $$m$$ é um número ímpar maior do que $$1$$, então o terno 

$$\left(m,\frac{m^2-1}{2},\frac{m^2+1}{2}\right)=\left (m,\frac{m^2-1^2}{2\cdot 1} ,\frac{m^2+1^2}{2\cdot 1}\right)$$

é pitagórico. Contudo, nem todos os ternos podem ser obtidos a partir desta fórmula. O teorema a seguir generaliza este resultado, possibilitando a construção de todos os ternos.

Teorema 1: Seja $$a$$ um número natural maior do que $$2$$. A fim de que o terno $$(a,b,c)$$ seja pitagórico é necessário, e suficiente, que exista um número natural $$d<a$$ da mesma paridade de $$a$$ tal que $$a^2/d$$ também tenha a mesma paridade de $$a$$ e tal que se tenha

$$(a,b,c)=\left (a,\frac{a^2-d^2}{2d},\frac{a^2+d^2}{2d}\right ).$$

Prova da suficiência: facilmente se verifica que $$a^2+b^2=c^2$$. Resta mostrar que $$b$$ e $$c$$ são, de fato, inteiros positivos. Temos dois casos.

- Caso I: $$a$$ é ímpar. Como $$d$$ divide $$a^2$$, existe $$ t $$ tal que $$a^2/d=t$$. Note que $$ t $$ é ímpar (pois o quociente de ímpares nunca é par). Como $$d$$ tem a mesma paridade de $$a$$, o número $$(t-d)$$ é par, logo existe $$m$$ tal que $$(t-d)/2=m$$. Em face destas observações, podemos escrever

$$\frac{a^2-d^2}{2d}=\frac{a^2}{2d}-\frac{d^2}{2d}=\frac{t}{2}-\frac{d}{2}=\frac{t-d}{2}=m$$

Portanto o cateto $$b$$ é um inteiro. Além disso, é positivo pois

$$d<a \Rightarrow d^2<a^2 \Rightarrow d<\frac{a^2}{d}=t \Rightarrow t-d>0\Rightarrow m>0$$

De maneira semelhante se demonstra que a hipotenusa é um inteiro positivo (basta trocar o sinal de $$-$$ pelo sinal de $$+$$).

- Caso II: $$a$$ é par. O raciocínio é análogo.

Prova da necessidade: seja $$(a,b,c)$$ um terno pitagórico. Devemos mostrar que existe um número $$d<a$$ de mesma paridade de $$a$$ tal que $$a^2/d$$ tem a mesma paridade de $$a$$ e tal que

$$(a,b,c)=\left (a,\frac{a^2-d^2}{2d},\frac{a^2+d^2}{2d}\right ).$$

Além disso, precisamos mostrar que $$a>2$$. Pondo $$d=c-b$$, elevando ambos os lados ao quadrado e subtraindo $$a^2$$ de cada um deles obtemos $$d^2-a^2=c^2-2bc+b^2-a^2$$. Lembrando que $$c^2=a^2+b^2$$ podemos obter

$$\frac{a^2-d^2}{2d}=b.$$

Esta última igualdade revela que $$d$$ divide $$a^2$$, caso contrário

$$b=\frac{1}{2}\left (\frac{a^2}{d}-d\right )$$

não poderia ser um inteiro. Note que a parcela dentro do último parêntese revela que $$d$$ deve ter a mesma paridade de $$a$$, caso contrário, novamente, $$b$$ não poderia ser inteiro (suponha que $$a$$ e $$d$$ têm paridades distintas e veja o que acontece). Para ver que $$d<a$$ e, por conseguinte, que $$a>2$$ note que $$c-b<c+b$$ e $$d=c-b$$ implicam

$$(c-b)d<(c+b)(c-b)=c^2-b^2\Rightarrow d^2<a^2\Rightarrow d<a.$$

Como $$2$$ não possui divisor de mesma paridade e menor do que si próprio, $$a$$ tem que ser maior do que $$2$$.

Exemplo 1: pondo $$a=10$$ e $$d =2$$ obtemos o terno $$(10, 24, 26)$$.

Exemplo 2: o teorema 1 nos dá uma maneira de determinar todos os ternos a partir de um dado cateto. Por exemplo, se quisermos determinar todos os ternos tais que um dos catetos seja $$102$$ podemos proceder da seguinte maneira:

- Encontramos todos os divisores de $$102^2=10404$$ menores do que $$102$$: $$1, 2, 3 ,4, 6, 9, 12, 17, 18, 34, 36, 51, 68$$.

- Selecionamos os que possuem a mesma paridade de $$102$$: $$2, 4, 6, 12, 18, 34, 36, 68$$.

- Filtramos os que, ao dividirem $$102^2$$, forneçam um quociente da mesma paridade de $$102$$: $$2, 6, 18, 34$$.

- Fazemos $$a=102$$ e $$d=2$$, $$6$$, $$18$$ e $$34$$ na fórmula dada pelo teorema. Os ternos procurados são, portanto, $$(102, 2600, 2602)$$, $$(102, 864, 870)$$, $$(102, 280, 298)$$ e $$(102, 136, 170)$$.

ALGUMAS APLICAÇÕES

Um ponto interessante em olhar os ternos sobre a perspectiva trazida no teorema 1 é que ela nos fornece sugestões para resolver alguns problemas. Vejamos alguns exemplos:

Exercício 1: mostre que o quadrado de qualquer natural maior do que $$2$$ pode ser escrito como diferença de dois quadrados de maneira não trivial (ou seja, sem que uma das parcelas seja nula).

Solução: queremos mostrar que dado qualquer natural $$q>2$$, existem dois naturais $$m\neq 0$$ e $$n\neq 0$$ tais que $$q^2=n^2-m^2$$. Observe que todo natural $$q>2$$ possui, no mínimo, um divisor da mesma paridade dele (notadamente, $$2$$ se ele for par e $$1$$ se ele for ímpar). Assim, pelo teorema 1, sempre poderemos encontrar uma tripla $$(q,m,n)$$ satisfazendo $$q^2+m^2=n^2$$ ou, o que dá na mesma, $$q^2=n^2-m^2$$.

Exercício 2: encontrar o triângulo retângulo de menor perímetro e lados inteiros, cujo um dos catetos mede $$12$$.

Solução: pelo teorema 1, o perímetro de qualquer triângulo retângulo de lados inteiros pode se escrito sob a forma 

$$P=a+\frac{a^2-d^2}{2d}+\frac{a^2+d^2}{2d}=a+\frac{a^2}{d}.$$

Fixando $$a$$, vemos que $$P$$ assumirá o menor valor quando $$d$$ assumir o maior possível. Como $$d=8$$ é o maior divisor par de $$12^2=144$$ menor do que $$12$$ e que proporciona um quociente par, o triângulo procurado é aquele no qual $$a=12$$, $$b=5$$ e $$c=13$$.

Exercício 3: dado $$n$$ ímpar, construir $$\sqrt{n}$$.

Solução: Basta observar que pondo $$a=\sqrt{n}$$ e $$d=1$$ na fórmula do teorema 1 ainda obtemos $$b$$ e $$c$$ inteiros. Daí é só construir o triângulo retângulo cujo cateto é $$b$$ e cuja hipotenusa é $$c$$. Este procedimento determinará o segundo cateto que será, justamente, o segmento pedido.

CONSTRUINDO TERNOS PRIMITIVOS

Apresentaremos a seguir, um teorema que nos dá algumas condições suficientes e outras necessárias para saber se o terno gerado a partir de um dado cateto será, ou não, primitivo.

Teorema 2: Seja $$a$$ um número natural maior do que $$2$$ e seja $$d<a$$ um natural da mesma paridade de $$a$$ tal que $$a^2/d$$ também tem a mesma paridade de $$a$$.

Chamemos $$(a,b,c)=(a,(a^2-d^2)/2d,(a^2+d^2)/2d)$$ de terno gerado por $$a$$. Afirmamos que:

(a) se $$n$$ é ímpar, $$a=2n$$ jamais irá gerar um terno primitivo.

(b) se $$a$$ for ímpar, então $$d=1$$ sempre irá gerar um terno primitivo.

(c) se $$n$$ é ímpar, $$a=2(n+1)$$ sempre irá gerar um terno primitivo para $$d=2$$.

(d) se $$d$$ valer a metade, ou a terça parte, de $$a$$ então o terno gerado será secundário e simétrico.

A demonstração deste teorema, semelhantemente à demonstração do teorema 1, pode ser feita a partir de propriedades elementares dos números inteiros. A título de exemplo, vejamos em detalhes a prova da primeira afirmação.

Prova do item (a): como $$d$$ é par, existe um inteiro $$k$$ tal que $$d=2k$$. Deste modo, o cateto $$b$$ terá a forma $$b=n^2/k-k$$. Pelo teorema 1, este número é inteiro e portanto $$k$$ tem que dividir $$n^2$$. Como $$n^2$$ é ímpar (pois $$n$$ é ímpar), $$k$$ também é ímpar (pois se fosse par não poderia dividir um ímpar). Como o quociente de ímpar é sempre ímpar, concluímos que $$n^2/k$$ é ímpar e, por conseguinte, o cateto $$b$$ é par (pois a soma de ímpares nunca é ímpar). Assim sendo, a hipotenusa $$c$$ também é par (pois sempre $$c=b+d$$). Isto mostra que os três termos do terno são pares donde segue que o terno não é primitivo.

Para provar o item (b) é necessário observar que, naquele caso, $$b$$ e $$c$$ serão naturais consecutivos; para provar o item (c) é necessário observar que $$b$$ e $$c$$ serão ímpares consecutivos e para provar o item (d) é necessário substituir $$d=a/2$$, ou $$d=a/3$$, na fórmula e analisar o resultado.

Exemplo 3: consideremos o caso $$a=27$$ ($$a$$ ímpar). Pondo $$d=1$$ obtemos o terno primitivo $$(27, 364, 365)$$; pondo $$d=9=27/3$$ obtemos o terno secundário simétrico $$(27, 36, 45)$$.

Exemplo 4: consideremos agora o caso $$a=20$$ ($$a$$ par do tipo $$2(n+1)$$ com $$n$$ ímpar). Pondo $$d=2$$ obtemos o terno primitivo $$(20, 99, 101)$$; pondo $$d=10=20/2$$ obtemos o terno secundário simétrico $$(20, 15, 25)$$.

Exercício 4: mostre que (i) nenhum terno pitagórico primitivo possui um dos catetos medindo $$510510$$ e (ii) para cada número primo $$p$$, existe um único terno pitagórico cujo um dos catetos mede $$p$$ e este terno é primitivo.

Solução: (i) resulta diretamente do item (a) do teorema 2 e (ii) resulta do item (b) do mesmo teorema (observe também que se $$p$$ é primo, então ele não possui nenhum divisor $$d\neq 1$$ satisfazendo as hipóteses do teorema ? é isso que garante a unicidade).


Referências: Livro "Introdução à história da matemática" de Howard Eves e artigo na RPM 07 "Números Pitagóricos: uma fórmula de fácil dedução e algumas aplicações geométricas" de Andréa Rothbart e Bruce Pausell.

Erros podem ser relatados aqui.




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